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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

EXTRADIÇÃO DE BATTISTI FARIA O BRASIL RETROCEDER ÀS TREVAS MEDIEVAIS



EXTRADIÇÃO DE BATTISTI FARIA O
BRASIL RETROCEDER ÀS TREVAS MEDIEVAIS

Celso Lungaretti (*)

Logo que iniciar a avaliação do pedido italiano de extradição de Cesare Battisti, nesta quarta-feira (9), o Supremo Tribunal Federal vai discutir se lhe cabe manifestar-se sobre um caso já decidido pelo governo, cumprindo o estabelecido na Lei do Refúgio. Em episódios anteriores, o STF considerou a decisão do governo definitiva.

Na condição de relator do Caso Medina, Gilmar Mendes já tentara em 2007 tirar o refúgio humanitário da esfera do Executivo, ao levantar a ridícula hipótese de que caberia ao Supremo definir se os crimes atribuídos a esse padre ligado à guerrilha colombiana eram políticos ou comuns.

Como ainda não presidia o STF, sua pretensão foi apreciada sem outras considerações que não as jurídicas. E ele perdeu por goleada: 9x1.

Fui o primeiro a lançar o alerta de que, confiando em seu novo status para reverter a derrota humilhante, reapresentaria a tese rechaçada. Foi o que afirmei no próprio título do meu artigo de 22/01/2009, Gilmar Mendes quer que STF usurpe prerrogativa do Executivo:

"...Mendes colocará em discussão se o Executivo tem competência para decidir se foi comum ou político o crime cometido por um estrangeiro.

Ou seja, volta a bater numa surrada tese das viúvas da ditadura brasileira: a de que, ao responder ao fogo dos usurpadores do poder que impuseram o terrorismo de estado em nosso país e cometeram as piores atrocidades, os resistentes estariam cometendo crimes comuns.

Quer anular, com uma penada, o milenar direito de resistência à tirania, que desde a Grécia antiga inspira os melhores cidadãos a não se vergarem a déspotas.

...Incapaz de fazer valer sua tese no caso brasileiro, Mendes espertamente escolheu um que lhe parecia mais adequado para fincar uma cunha na nossa nobre tradição de acolher perseguidos políticos de todos os países e convicções: o de um ex-militante da ultra-esquerda italiana que combateu o compromisso histórico firmado entre a democracia-cristã e os comunistas.

...Espera-se que os ministros do Supremo rejeitem mais uma vez o casuísmo proposto por Mendes, evitando mergulhar o País numa crise institucional apenas porque um alto magistrado insiste em impor-lhes sua vontade e confrontar o Executivo."

Quando entrevistei Battisti na penitenciária da Papuda, em maio último, constatei que avaliávamos da mesma maneira a perseguição que lhe movem os direitistas de dois continentes.

Ele disse considerar-se apenas "um instrumento para a luta contra o que representou 1968 na história da humanidade”. Como “1968 ainda não acabou”, deixando sementes que continuam a inspirar projetos alternativos ao putrefato capitalismo globalizado que aí está, as forças reacionárias tentam desacreditar esse legado, fazendo dele, Battisti, um símbolo para caracterizar 1968 como "um movimento criminoso”.

A CONVENÇÃO DE GENEBRA
SERIA COLOCADA EM XEQUE

Na batalha a ser travada no STF, o que estará em jogo é a confirmação das conquistas da humanidade na área de direitos humanos ou o início de um perigoroso retrocesso legal, mais inquietante ainda porque acompanharia o retrocesso social que tem caracterizado as últimas décadas, depois da primavera de 1968.

Na primorosa Uma Breve Análise do Caso Battisti, o professor aposentado da Unicamp e membro da Anistia Internacional dos EUA Carlos Luzardo assim analisa o dano que seria causado por uma mudança no entendimento do Supremo:

"A invasão do STF no problema do asilo produziu alarme em vários organismos dedicados aos direitos humanos. O primeiro alarme foi disparado pelo próprio Conare - Conselho Nacional para Refugiados que reparou no perigo que significa que uma instituição básica da civilização, como o direito de asilo, esteja em mãos de um conclave de figuras com poder ilimitado.

O presidente do Conare, Luiz Paulo Barreto, teme que o Ministério de Justiça seja deslocado pelo STF como última instância de decisão. Segundo ele, o Tribunal não teria capacidade de avaliar quando existe perseguição e quem merece refúgio, já que isso implica conhecer aspectos políticos, étnicos, sociais, culturais e geográficos. Os juízes são alheios a este tipo de problemas, pois a função do judiciário é a de avaliar as questões formais de direito.

Obviamente, o funcionário não podia falar muito mais, mas outro perigo que muitas pessoas percebem é que o Judiciário, famoso por seu ranço classista, racista, católico, xenófobo e homófobo, não seria precisamente o lugar ideal para decidir pelo refúgio de africanos pobres e islâmicos, perseguidos por ser gays.

O Acnur - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados também reagiu. Num documento encaminhado ao STF, o representante Javier Lopez-Cifuentes manifestou sua preocupação pela possibilidade de que os governos que não conseguem extraditar suas futuras vítimas entrem com mandatos na justiça. Embora ele não pudesse ser tão explícito, sem dúvida se alarmou ao pensar que um direito humanitário se transformaria numa briga de bacharéis, sujeita a intrigas, interesses, trocas de favores, e outras mazelas que afetam o Judiciário da maioria dos países.

O documento adverte que a intromissão do STF pode fazer com que processos já fechados sejam abertos, tornando interminável a perseguição de refugiados. A situação atual poderia criar um precedente para a eliminação do refúgio/asilo, o que, sem dúvida, é um objetivo presente em todos os que se opõem ao asilo dado a Battisti, quaisquer que sejam suas razões para tal oposição.

Com efeito, se o STF aprovasse a extradição de Battisti, e o governo não tivesse coragem de desobedecer, teria sido totalmente deturpado o princípio básico da Convenção de Genebra de que, sob nenhum circunstância, refugiados/asilados podem ser objetos de extradição.

A abolição do refúgio/asilo implica fazer a humanidade retroceder até antes do Renascimento, ou talvez mais."

* Jornalista e escritor, mantém os blogues:
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

O ATO: CONY SEPULTOU OS IDEAIS. O FATO: AGORA APÓIA ATÉ CENSURA!

Pete Townshend, o guitarrista e compositor das músicas do The Who, produziu em 1965 uma canção-manifesto, "My Generation", que trazia um verso fortíssimo: "Prefiro morrer antes de envelhecer".

Só que ele não morreu, envelheceu. E se tornou o oposto dos jovens rebeldes de outrora, capaz de proferir verdadeiras catalinárias contra os downloads gratuitos do MP3 e até de rasgar seda para o então presidente George W. Bush: "Bush se esforça para dar uma vida digna ao povo dos Estados Unidos, e não tenho o direito de dizer como ele deve dirigir o país".

Daí o sarcástico cala-boca que levou de Kurt Cobain, do Nirvana: "Prefiro morrer antes de virar Pete Townshend".

Como tenho duas filhas, de um e sete anos, que amo demais e quero ver crescerem, não irei ao ponto de afirmar que prefiro morrer antes de virar Carlos Heitor Cony. Não se brinca com essas coisas.

Mas, a minha decepção com Cony deve equivaler à de Cobain com Townshend.

Antes mesmo de aderir ao marxismo, eu já o admirava. Tive uma fase existencialista, lá pelos 14 anos, e o Cony era o escritor que, no Brasil, seguia os passos de meus ídolos Jean-Paul Sartre e Albert Camus.

Li muita coisa da sua fase despolitizada e gostei, principalmente, de Antes, o Verão e Informação ao Crucificado.

Mas, ele mudou de postura a partir do golpe de 1964.

Até então sua matéria-prima era a impossibilidade de realização plena dos indivíduos de classe média na sociedade burguesa, focada no plano pessoal.

A partir daí ele tomou lugar na trincheira dos que lutavam diretamente contra a burguesia e seus cães de guarda, os militares.

Mas, não foi uma opção tão ideológica assim, pelo menos segundo sua própria versão.

Disse que, como benjamim de uma extraordinária redação do Correio da Manhã (RJ), na qual pontificavam grandes jornalistas de esquerda como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Antonio Callado, Jânio de Freitas, Sérgio Augusto, Márcio Moreira Alves e Hermano Alves, sentia-se desobrigado de abordar temas políticos, pois havia quem o fizesse melhor do que ele.

Com a quartelada, entretanto, essas figurinhas carimbadas não puderam dar sequência ao seu trabalho costumeiro, pois se tornaram alvos prioritários de prisões, intimidações e todo tipo de cerceamento.

Cony teria entrado nesse vácuo, substituindo-as na missão de denunciar a nudez do rei. Como tinha prestígio literário (seu livro de estréia, O Ventre, foi sucesso de crítica e de vendas) e reputação de apolítico, os milicos acabaram engolindo seus arroubos de indignação. Devem ter pensado que a fase seria passageira.

OPÇÃO PELA LUTA ARMADA

Mas Cony perseverou. Depois desses artigos combativos que escreveu no pós-golpe e reuniu no livro O Ato e o Fato, faria a opção pela luta armada.

Cheguei a vê-lo discursar numa manifestação estudantil aqui em São Paulo, em meados de 1968, quando afirmou que a vitória contra o arbítrio não seria conquistada nas cidades. Apontava-nos, implicitamente, o caminho da guerrilha rural.

Esta guinada foi expressa em seu livro de 1967, Pessach, a Travessia. O personagem principal é uma óbvia projeção dele mesmo: um escritor de meia idade, em crise existencial, que envolve-se casualmente com um grupo guerrilheiro.

O que ele quer mesmo é sair dessa fria. Mas, no final, mortos os combatentes, ele tem a chance de transpor a fronteira e pôr-se a salvo. Prefere empunhar a arma de um deles e dar sequência à sua luta.

A travessia pessoal do Cony, infelizmente, não foi tão altaneira. Algumas prisões (sem maus tratos, claro, pois era vip) e o desemprego quebraram sua espinha.

Ainda fez um último grande romance, o melhor de sua carreira: Pilatos (escrito em 1972 e publicado dois anos depois). Mostra, com jeitão de pesadelo, um Brasil desumanizado, em que as pessoas são movidas apenas por apetites e ambições, sem nenhum sentimento nobre.

Era, claro, o Brasil do milagre econômico.

CURVANDO-SE À EVIDÊNCIA DOS FATOS

E Cony deixou evidenciados seus sentimentos ao derivar o título destes versos do "Samba Erudito", de Paulo Vanzolini: "Aí me curvei/ Ante a força dos fatos/ Lavei minhas mãos/ Como Pôncio Pilatos".

Ou seja, se é nessa pocilga que vocês optaram por viver, voltando as costas a quem combatia por um Brasil melhor, então chafurdem à vontade. Não tenho nada a ver com isso.

O desencanto com o País e as mágoas por não encontrar companheiros de esquerda que o socorressem quando ficou na rua da amargura tiveram, como resultado, uma nova travessia, desta vez negativa, de Cony. Tornou-se, ele próprio, um homem sem ideais.

Pediu emprego a Adolfo Bloch que, talvez em nome da ascendência judaica comum, o acolheu muito bem em sua editora.

Mas, o diabo sempre exige algo de quem lhe vende a alma: além de cuidar de uma revista, Cony era obrigado a redigir, como ghost writer, os editoriais arquirreacionários de Bloch, fazendo apologia da ditadura. Seus colegas de redação, pelas costas, referiam-se a ele como Cony-vente.

No ano 2000 ingressou na Academia Brasileira de Letras, que decerto lhe provocaria náuseas em 1958, quando iniciou a carreira.

Em 2004, embora seja profissional muito bem pago como jornalista e escritor, fez questão de obter reparação de ex-preso político.

Pior: foi duplamente favorecido, passando à frente de quem estava mofando há anos na fila e recebendo uma pensão mensal (e respectiva indenização retroativa) extremamente exagerada, segundo os próprios critérios do programa. Tratamento vip, de novo!

"CERTOS SETORES DA IMPRENSA"

E chegamos aos dias de hoje, quando não só defende fervorosamente seu colega de Academia, José Sarney, do clamor público pela justa punição dos delitos em que foi flagrado, como chega a apoiar a censura de jornais!

Isto mesmo, está na sua coluna desta 5ª feira na Folha de S. Paulo:

"Acho exagerado o fervor de certos setores da imprensa em reclamar de processos ou de sentenças da Justiça, considerando violação de uma liberdade a qual todos têm direito, desde que não fira direito de terceiros.

"Afinal, a imprensa não é uma vestal inatacável, acima de qualquer valor da sociedade. Ela está sujeita ao Estado de Direito, que dá liberdade a qualquer cidadão, jornalista ou não. O fato de um juiz aceitar um processo não é uma violação."

Ou seja, um juiz ligado a José Sarney proíbe um jornal de noticiar um inquérito envolvendo falcatruas da família Sarney e a única coisa que Cony encontrou para criticar é... a solidariedade que O Estado de S. Paulo está recebendo de "certos setores da imprensa"!

Pensando bem, eu não preciso mesmo dizer que preferiria morrer antes de virar Carlos Heitor Cony. Por um motivo simples: nem que viva 100 anos decairei tanto.
* Jornalista e escritor, mantém os blogues:
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O QUE PODEMOS ESPERAR DO JULGAMENTO DE BATTISTI NO STF?




Celso Lungaretti (*)

O Supremo Tribunal Federal marcou para o próximo dia 9 o julgamento do caso do escritor e perseguido político Cesare Battisti, 54 anos, cuja extradição é requerida pelo governo italiano para o cumprimento de uma pena de prisão perpétua com privação de luz solar.

Battisti foi detido no Brasil em março de 2007 e, desde então, está preso preventivamente por determinação do STF.

Este longo período de detenção por crimes que lhe são atribuídos alhures passou a ser ainda mais questionável quando o governo brasileiro, por decisão do ministro da Justiça Tarso Genro, concedeu o refúgio humanitário a Battisti, em janeiro de 2009.

Pela Lei brasileira e pela jurisprudência estabelecida por decisões anteriores do próprio STF, a decisão de Genro deveria determinar a libertação de Battisti.

O Supremo optou, entretanto, por mantê-lo preso até apreciar o caso. Sucessivos pedidos dos seus advogados foram negados, embora o comezinho bom senso indicasse que deveria, pelo menos, ter obtido o benefício da liberdade vigiada.

Desde fevereiro, o presidente do STF Gilmar Mendes vinha prometendo marcar o julgamento do caso, sem cumprir.

Em julho, recebi e divulguei a mensagem angustiada que Battisti me enviou da penitenciária de Papuda (DF):

"Ao fim do recesso do STF, fará oito meses que eu continuo detido após [ter-me sido concedido] o refúgio. O abuso do STF está passando de todos os limites, e isso não é só responsabilidade do STF, mas também de todas as instituições brasileiras, que contrariam o que está estabelecido nas leis e nos tratados internacionais, mantendo preso um refugiado político!"

Três jornalistas lançamos artigos protestando energicamente contra essa situação kafkiana, de um indivíduo estar encarcerado tão-somente porque autoridades não cumprem com seu dever: Rui Martins, Antonio Aggio Jr. e eu.

Quando o coro foi engrossado por ninguém menos do que o maior jurista brasileiro vivo, Dalmo de Abreu Dallari, a coisa mudou de figura.

Em sua espaço semanal no Jornal do Brasil, Dallari não só acusou Gilmar Mendes de ser "pessoal e diretamente responsável por um caso escandaloso de prisão mantida ilegalmente", como atribuiu sua conduta a uma espécie de pirraça:

- Defendendo abertamente a extradição, e contrariado por não poder concedê-la, o presidente do Supremo Tribunal vem retardando o julgamento do pedido de extradição, criando-se um surrealismo jurídico: mantém-se o refugiado preso, como castigo pela impossibilidade legal de extraditá-lo.

Mendes sentiu o golpe e, três dias depois, anunciou a data do julgamento.

CONFLITO DE PODERES

Uma questão preliminar que os ministros do STF avaliarão é, exatamente, se a decisão do governo brasileiro torna obrigatório o arquivamento do processo de extradição, conforme determina o artigo 33 da Lei nº 9.474, de 22/07/1997 (a chamada Lei do Refúgio), segundo o qual "o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio".

Antes de assumir a presidência do STF, Mendes fez em 2007 uma tentativa de derrubar esse artigo, o que descaracterizaria a Lei do Refúgio como um todo. Foi no julgamento do caso de Olivério Medina, ex-integrante da guerrilha colombiana.

Em seu relatório, Mendes propôs que o Supremo avocasse a definição sobre se eram políticos ou comuns os crimes imputados a Medina. Na ocasião, os demais ministros votaram contra sua pretensão e a favor do acatamento pleno da Lei do Refúgio.

Talvez seja a humilhação que então sofreu, como relator cujo parecer não foi seguido por nenhum dos colegas, um motivo para a conduta extremamente parcial de Mendes na condução do Caso Battisti.

Sua tendenciosidade saltou aos olhos quando um jornalão publicou uma daquelas informações de bastidores que nunca se sabe se são verdadeiras ou manipuladas: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria mandado ao STF o recado de que, caso a palavra final ficasse com ele, não concederia a extradição. Compreensivelmente, Lula poderia estar querendo evitar comparações com Getúlio Vargas, que entregou Olga Benário para a morte nos cárceres nazistas.

Logo em seguida, sabatinado pela Folha de S. Paulo, Mendes fez questão de tranquilizar Lula, afirmando que, "se for confirmada a extradição, ela será compulsória e o governo deverá extraditá-lo".

Em termos jurídicos, o que ele afirmou foi uma monstruosidade, pois implicaria suprimir-se, com uma só penada do STF, vários direitos dos pleiteantes de refúgio humanitário: o de apelarem uma segunda vez ao Comitê Nacional para Refugiados Políticos (Conare), apresentando novos argumentos; o de recorrerem uma segunda vez ao ministro de Justiça; e o de apelarem à clemência do presidente da República, a quem cabe autorizar ou não o governo estrangeiro a retirar o extraditando do País.

É chocante Mendes ter manifestado a intenção de usurpar tantas prerrogativas do Executivo e ainda dar como favas contadas que os demais ministros do STF, como vaquinhas de presépio, o acompanharão nessa aventura, que acabaria colocando Poderes em conflito (mesmo que o Executivo se omitisse, a defesa de Battisti certamente provocaria a discussão legal dessa decisão extremamente questionável).

Por conta da tortuosidade jurídica dos caminhos que levam à extradição, o mais provável é que os ministros do STF acatem o parecer do procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, que recomendou a extinção do processo sem julgamento de mérito, com a consequente libertação de Battisti.

Souza não só se baseou no que a Lei do Refúgio estabelece, como lembrou ser a concessão ou não de status de refugiado político uma questão da competência do Poder Executivo, condutor das relações internacionais do País.

No mesmo sentido, o presidente do Comitê Nacional para Refugiados, Luiz Paulo Barreto, advertiu que seria um erro o STF substituir o Ministério da Justiça como última instância nos processos de refúgio humanitário, pois não é a instituição mais apta para cumprir tal função:

- Nem sempre o Judiciário tem condições de avaliar todos os detalhes de um processo de refúgio. P. ex., no caso do Sudão, da Eritreia, da República Democrática do Congo, o Supremo tem condições de saber que neste momento e nesses países há perseguição? Talvez não, porque o Supremo não é órgão especializado para dar refúgio.

TORTURAS E ABERRAÇÕES JURÍDICAS

Uma segunda questão preliminar seria a prescrição da pena a que Battisti foi condenado na Itália, já que os crimes a ele imputados ocorreram há mais de 30 anos.

Se passar por cima de tudo isso, o STF provavelmente desconsiderará também os argumentos de ordem histórica, no sentido de que a Itália dos anos de chumbo extrapolou os limites de uma democracia ao combater os grupos de ultra-esquerda, seja com a prática generalizada da tortura, seja implantando leis de exceção com aplicação retroativa e que admitiam prisões preventivas com mais de dez anos de duração, entre outros absurdos jurídicos.

Idem, os referentes aos trâmites anômalos dos processos de Battisti, que, condenado em 1979 por subversão, teve o processo reaberto a partir das acusações de um delator premiado, às quais vieram logo somar-se suspeitas corroborações de outros aspirantes a favores da Justiça italiana.

O segundo julgamento, de 1987, se deu à revelia, pois Battisti estava foragido no México. Ademais, foi representado por advogado hostil (havia conflito de interesses) que usou procuração adulterada para substituir os advogados inicialmente incumbidos do caso, depois que estes também foram presos.

Embora o falseamento da procuração tenha sido comprovada por perita altamente qualificada, os tribunais italianos negaram a Battisti um novo julgamento, no qual pudesse exercer realmente seu direito de defesa.

E houve até recentes declarações ameaçadoras de agentes penitenciários italianos, inspirando justificado temor de que Battisti venha a sofrer retaliações, já que lhe atribuem participação no assassinato de um carcereiro que maltratava presos políticos.

Tudo isso é mais do que suficiente para justificar a confirmação do refúgio de Battisti, mesmo porque se trata de um instituto de ordem humanitária.

Para Gilmar Mendes, os crimes pelos quais Battisti foi condenado seriam comuns, apesar da sentença italiana os qualificar como políticos e de haverem sido enquadrados em legislação instituída especificamente para o combate à subversão.

Então, contraditoriamente, os defensores da extradição alegam que não cabe a nós, brasileiros, discutirmos a lisura dos processos italianos, mas o presidente do STF pretende classificar como comuns os crimes que os tribunais da Itália consideraram políticos.

E a exageradíssima reação italiana à decisão de Tarso Genro é o melhor argumento no sentido de que Battisti tem mesmo motivos para temer arbitrariedades em sua terra natal.

Começando pelo fato de que foi personagem dos mais secundários quando militante, mas depois a Itália de Berlusconi fez dele um símbolo, com motivações flagrantemente políticas.

* Jornalista e escritor, mantém os blogues:
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Liberdade para Cesare Battisti: assine a petição

O escritor e perseguido político Cesare Battisti ainda está preso no Brasil, ao arrepio da Lei e da jurisprudência, embora já em janeiro/2009 devesse ter sido libertado em função do reconhecimento de sua condição de refugiado político por parte do governo brasileiro. E a Italia continua movendo céus e terras para impor sua extradição, numa campanha que mobiliza recursos astronômicos e utiliza pressões as mais descabidas para vergar as autoridades brasileiras a seus desígnios.

Pedimos aos cidadãos com espírito de justiça, no Brasil e no mundo, que assinem e divulguem este abaixo-assinado para a libertação de Cesare Battisti.

Link para deixar sua assinatura: http://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/4914

O RESCALDO DO APAGÃO JUDICIÁRIO

O RESCALDO DO APAGÃO JUDICIÁRIO

Celso Lungaretti (*)

"O relator deste caso é -- logo quem! -- Gilmar Mendes (...). Se precedentes significam algo, vem aí uma decisão tão aberrante quanto a tomada no julgamento do diploma de jornalista, que teve Mendes como relator. Os rumores em Brasília são de que, utilizando filigranas jurídicas, o STF absolverá Palocci." (prognóstico certeiro do blogue Náufrago da Utopia, três dias antes da decisão vergonhosa)

"Se você perguntar a qualquer um do povo se ele acha que Palocci mandou quebrar o sigilo, verá que a sensação é de que ele tinha interesse nisso. Ele é o único beneficiado. Isso é de uma clareza solar. A corda acabou estourando do lado mais fraco, como sempre." (Marco Aurélio Mello, ministro do STF)

"No recebimento de uma denúncia, exige-se que a autoria e a materialidade do crime estejam presentes. Depois, no curso do processo, discute-se se há provas suficientes. O Supremo, porém, discutiu se o ministro sabia ou não da quebra. Olha, tanto o Palocci sabia que, na época, ele perdeu o cargo! O que o STF fez foi uma 'absolvição sumária'." (Luiza Cristina Frischeisen, procuradora Regional da República)

"O Ministério Público tinha indícios contundentes para abrir um processo contra Palocci. A decisão do Supremo, mais uma vez, é contrária à sociedade." (Janice Ascari, procuradora regional da República)

"O que significa, afinal, um episódio de violação de sigilo bancário, promovida em retaliação a um serviçal doméstico, diante do excelente trânsito de Palocci nos setores que contam para o governo, seus sustentáculos na área empresarial e financeira?" (Folha de S. Paulo, editorial)

"Essa foi a lição ministrada pelo STF a caseiros, mordomos, secretárias e motoristas de poderosos: tomem cuidado. Suas palavras não valem nada. Terão efeito nulo se desejarem relatar alguma impostura. Todos vocês correm o risco de terem suas vidas devassadas." (Fernando Rodrigues, colunista)

"Tem gosto pra tudo. Pra elogiar Mussolini, Hitler, Pinochet, Átila, Gengis Khan, Vlad Dracul, a ditadura militar... e até as abomináveis manipulações da Justiça em proveito dos poderosos que marcam a trajetória do Robin Hood às avessas responsável pelo apagão judiciário de anteontem." (resposta que dei a um comentário no CMI)

"Eu, brasileiro, confesso/ Minha culpa, meu degredo/ Pão seco de cada dia/ Tropical melancolia/ Negra solidão/ (...) Aqui, meu pânico e glória/ Aqui, meu laço e cadeia/ Conheço bem minha história/ Começa na lua cheia/ E termina antes do fim/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo" (Marginália II, canção que foi composta por Gilberto Gil e Torquato Neto há quatro décadas, mas cuja atualidade ficou comprovada anteontem)

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BOMBA! SEGUNDO EX-DIRETOR DO DOPS, O CABO ANSELMO JÁ ERA AGENTE DUPLO EM 64

Celso Lungaretti (*)

Mal o cabo Anselmo acabava de finalmente mostrar a cara num longo Canal Livre da rede Bandeirantes, o bumerangue a atingiu em cheio: a Folha de S. Paulo divulga na edição desta segunda-feira (31) que Cecil Borer, diretor do Dops carioca à época da quartelada de 1964, revelou que o tinha então a seu serviço.

O jornal afirma dispor da gravação de tal entrevista, na qual Borer (1913-2003) relata a colaboração de Anselmo não apenas com o Deops, mas também com o Cenimar e a CIA.

Conforme venho esclarecendo desde que foi noticiada a pretensão de José Anselmo dos Santos a uma reparação federal (ver aqui, aqui e aqui), as regras da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça a obrigam a concordar com o pedido se ficar estabelecido que o ex-marinheiro (o apelido de cabo era equivocado) foi mesmo um militante de esquerda até 1971 e só trocou de lado em tal ano, passando a facilitar a prisão e/ou morte dos companheiros.

A única situação em que a Comissão de Anistia pode recusar o pedido de Anselmo, eu sempre disse, é a de que Anselmo já fosse agente duplo em 1964. Havia vários indícios neste sentido, mas nenhuma prova cabal.

A entrevista da Folha pode ser a evidência sonhada pelos que tentam evitar a concessão, a um auxiliar dos carrascos, de um benefício criado para suas vítimas.

A gravação, mais os inúmeros episódios flagrantemente suspeitos da vida de Anselmo, já serão suficientes para provocar muita discussão quando o colegiado for apreciar este processo. A decisão, em tais circunstâncias, seria impossível de se prever.

E se aparecer mais um - um só! - elemento de prova com o mesmo peso das palavras do ex-diretor do Dops, arrisco o prognóstico de que o pedido de Anselmo será unanimemente recusado.

Talvez seja a isto que o ministro da Justiça Tarso Genro estivesse aludindo há algumas semanas, quando aventou a possibilidade de que Anselmo já atuasse como "agente infiltrado dos golpistas" em 1964. Afinal, deu uma declaração enfática demais para quem não tivesse curinga na manga:

"Não cabe a aplicação da Lei da Anistia a pessoas que deliberadamente atuaram como agente do Estado, seja para desestabilizar um regime legal, como era o governo João Goulart, seja depois, numa estrutura paralela".

Então, é bom o Anselmo ir desde já considerando a hipótese de seguir o conselho que Genro então lhe endereçou, de entrar com ação ordinária contra a União, requerendo indenização por haver atuado na repressão política sem reconhecimento do Estado "pela prestação desse regime".

Pois, no próprio ato de recusar-lhe a reparação, a Comissão de Anistia estará reconhecendo sua condição de agente dos serviços de informação do Estado durante décadas. Nada mais justo do que ele ser indenizado por todos esses anos em que trabalhou sem registro em carteira. E sua profissão correta poderá até constar da nova documentação que requereu...

ANTES ELOGIAVA FLEURY. AGORA
DIZ QUE ELE O AMEAÇOU DE MORTE

De resto, a minha impressão é de que sua aparição na TV deve ter causado ao telespectador comum o mesmo asco que provocou em nós, conhecedores dos fatos esmiuçados no Canal Livre de 30/08/2009.

Tentando conciliar as mentiras atuais com as que contou aos jornalistas-escritores Octávio Ribeiro (Pena Branca) em 1984 e a Percival de Souza em 1999, Anselmo enredou-se em inúmeras contradições e não foi crível ao afirmar que a repressão lhe prometera poupar Soledad Barret Viedma, a militante uruguaia cuja morte propiciou a despeito de estar gerando uma criança dele.

Anselmo anteriormente afirmou ter apenas apelado à repressão para que a poupasse. Ao contar o conto de novo, aumentou um ponto. Só que a cascata pegou mal, já que as bestas-feras da ditadura não eram dadas a fazer promessas desse tipo. Então, ele perdeu outro tanto de credibilidade, se é que ainda tinha alguma.

Foi penoso acompanharmos as fanfarronices e as justificativas tortuosas de Anselmo ao longo de aproximadamente hora e meia de programa.

De um lado, repetiu os mais surrados clichês da propaganda anticomunista. E soaram extremamente inverossímeis suas declarações de que traiu os movimentos de resistência para evitar uma guerra civil, embora noutros momentos admitisse o despreparo e a inferioridade de força dos grupos guerrilheiros face à ditadura.

De outro, tentou angariar alguma simpatia para sua cruzada atual ao falar sobre torturas e coações que teria sofrido. Só que levou um xeque-mate quando disse ter sido ameaçado de morte pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e lhe foram atirados na cara os elogios rasgados que fez outrora ao sinistro personagem.

ANSELMO FOI PRESO POR ENGANO
EM 64. DEPOIS, ENCENARAM SUA FUGA

Quanto á notícia da Folha, Ação de Anselmo é pré-64, diz policial (assinantes do jornal ou do UOL podem acessar aqui), causa estranheza a entrevista do ex-diretor do Dops só estar sendo divulgada hoje, oito anos depois de concedida e seis anos depois da morte de quem a concedeu. A grande imprensa tem razões que a própria razão desconhece.

Eis os principais trechos:

"Diretor do Dops carioca à época do golpe de Estado de 1964, o policial Cecil Borer (1913-2003) afirmou dois anos antes de morrer que o marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos, mais célebre agente duplo a serviço da ditadura militar, já era informante da Marinha e da polícia política antes da deposição do presidente João Goulart.

"As entrevistas de Borer ao repórter da Folha foram concedidas em 2001 na apuração para um livro e uma reportagem. Ele autorizou a gravação.

"O policial, denunciado como torturador de presos durante três décadas, teve atuação destacada nas prisões após o golpe de 1964. Aposentou-se em 65.

"Ao ser entrevistado pela Folha, ele tinha 87 anos. Narrou 'pressões' físicas contra presos, negou a condição de torturador e falou de agentes infiltrados na esquerda.

"No começo de 1964, Anselmo presidia a AMFNB (Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil). Borer contou que ele já era informante do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) da Guanabara, do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e dos "americanos" - a CIA (Agência Central de Inteligência).

"Foi categórico: '[Antes de abril de 1964, Anselmo] trabalhava, trabalhava'. Para quem? 'Para todo mundo.' Detalhou: 'Ele trabalhava para a Marinha, ele trabalhava para mim, trabalhava para americano'. Não esclareceu a data em que o militar teria aderido.

"Conforme Borer, Anselmo não foi um infiltrado escalado para se misturar aos marinheiros. O ex-diretor disse que ele foi recrutado pelo Cenimar quando já atuava na associação.

"O policial afirmou que as informações transmitidas por Anselmo eram compartilhadas por Cenimar e Dops com classificação 'A', exclusiva de fonte de alta confiança. Os organismos tratavam-no por nome em código. 'Não havia segredo entre Dops e Marinha. (...) Esse trabalho, essa informação veio do Anselmo, então é classe A'.

"Dias após a queda de Goulart, Anselmo se asilou na Embaixada do México no Rio. Em pouco tempo abandonou o local e se abrigou em um apartamento na zona sul. No dia seguinte, foi detido e levado para o Dops.

"Ele disse que o esconderijo foi identificado por agentes seus infiltrados entre exilados no Uruguai. Informaram o endereço a um policial que ignorava a dupla militância de Anselmo, que acabou preso.

"Sua condição de informante, diz Borer, era de conhecimento restrito, mesmo no Dops e no Cenimar: 'Então Anselmo veio, tá preso, você não vai soltar, que não vai queimar'.

"Anselmo retomou a liberdade somente em 1966, quando Borer já estava aposentado, ao ir embora de uma delegacia no bairro do Alto da Boa Vista onde estava preso. Lá, ele circulava quase sem restrições.

"A fuga foi uma farsa, disse Borer. O objetivo do que descreve como encenação de colegas seus foi infiltrar o agente na esquerda clandestina. Anselmo foi para o Uruguai, onde entrou no MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), grupo dirigido por Leonel Brizola.

"A seguir, treinou guerrilha em Cuba. De volta ao Brasil, aderiu à VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), organização armada depois dizimada por suas delações.

"Em entrevista ao repórter Octávio Ribeiro, em 1984, Anselmo disse que se entregou por iniciativa própria ao Deops por volta de 1971 e nunca foi torturado. Em 1999, assegurou ao repórter Percival de Souza que foi surpreendido e preso pelo Deops e que o torturaram antes da mudança de lado."


*
Jornalista, escritor e ex-preso político, Celso Lungaretti era companheiro de militância e amigo de José Raimundo da Costa, o Moisés, que foi preso numa armadilha do cabo Anselmo, levado para a Casa da Morte de Petrópolis (RJ), torturado e executado. Mantém os blogues Náufrago da Utopia e Celso Lungaretti - O Rebate

NINGUÉM MAIS DUVIDA DE QUE O CABO ANSELMO FOSSE SEMPRE AGENTE DUPLO

Celso Lungaretti (*)

Anselmo disse a Octávio Ribeiro
que se entregou ao Dops; depois,
inventou que foi preso e torturado

A pretensão do Cabo Anselmo de ser anistiado como vítima da ditadura de 1964/85, embora reconheça ter-lhe prestado serviços sanguinários de 1971 em diante, não deverá resistir ao testemunho gravado de Cecil Borer, ex-diretor do Dops da Guanabara.

Dois anos antes de morrer, Borer (1913-2003) declarou à reportagem da Folha de S. Paulo que José Anselmo dos Santos não só atuava como colaborador do seu departamento no momento do golpe de Estado, como prestava o mesmo serviço ao Cenimar e à CIA.

Tal gravação deverá determinar a recusa do pedido de Anselmo, foi o que avaliaram cidadãos cuja opinião tem muito peso na área de defesa dos direitos humanos e, certamente, deve coincidir com a de membros da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, à qual cabe elaborar um parecer sobre o caso.

Assim, para o secretário especial dos Direitos Humanos da Presidência da República Paulo Vannuchi a nova evidência "derruba a pretensão" de Anselmo.

Vannuchi admite que existia a possibilidade de a Comissão ser obrigada a anistiar o ex-marinheiro, decidindo com base "técnica e jurídica" e tendo de colocar em segundo plano sua "repulsa política e ética".

Agora, não mais: "O depoimento [de Borer] dá o fundamento [que faltava] à Comissão de Anistia, porque a decisão seria difícil"

A avaliação de Vannuchi coincide com a da presidente do Grupo Tortura Nunca Mais no Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, que declarou: "O Cabo Anselmo não passou a colaborar após a prisão. Ele já era infiltrado. Não tem direito a nenhuma anistia".

E também com a da a atual diretora e ex-presidente do GTNM em São Paulo, Rose Nogueira, para quem "está mais do que claro que ele já era infiltrado antes de 1964".

A decisão final caberá ao ministro da Justiça Tarso Genro, que pode acatar o entendimento da Comissão ou tomar decisão diferente, conforme sua convicção.

No entanto, a praxe é o ministro prestigiar o parecer, salvo quando surge um fato novo de muita relevância no período de alguns meses que transcorre entre a análise do caso no colegiado e a assinatura da portaria ministerial.

E Anselmo não deve esperar nenhuma condescendência por parte de Genro, que no início do mês passado já antecipava existirem índicios de sua atuação como "agente infiltrado dos golpistas" no pré-1964, o que o desqualificaria como perseguido político:

"Não cabe a aplicação da Lei da Anistia a pessoas que deliberadamente atuaram como agente do Estado, seja para desestabilizar um regime legal, como era o governo João Goulart, seja depois, numa estrutura paralela".

Ironicamente, o ministro acrescentou que, na hipótese de indeferimento do seu pedido de anistia, Anselmo poderia entrar com ação ordinária contra a União, requerendo indenização por haver atuado na repressão política sem reconhecimento do Estado "pela prestação desse regime".

ANSELMO VENDIA INFORMAÇÕES
DO DOPS PARA AS MULTINACIONAIS

Mas, estará mesmo Anselmo precisando desesperadamente de recursos, conforme alega? Aí tudo que temos são suposições, pois ele, com as opções que fez, escolheu viver como um incógnito no seu próprio país.

Ele próprio admite, p. ex., que recebia remuneração dos órgãos de repressão política quando os ajudava a destruírem a Vanguarda Popular Revolucionária e prenderem/executarem seus militantes.

Uma revelação interessante acaba de surgir no site do Luiz Nassif, sobre o que o sinistro personagem andou fazendo depois de dizimados os grupos guerrilheiros, conforme relato do veterano jornalista Antonio Carlos Fon:

"Cabo Anselmo frequentava o Dops de São Paulo, onde tinha um sócio, o delegado Josecyr Cuoco, com quem mantinha uma agência privada de informações que, com agentes infiltrados no movimento sindical e acesso aos relatórios dos alcaguetes do Dops, vendia informações para as multinacionais, especialmente do setor automobilístico, na época muito assustadas com o novo sindicalismo que nascia no ABC".

Segundo Fon, a espetaculosa entrevista que Anselmo concedeu em 1984 ao Octávio Ribeiro (Pena Branca), para publicação na IstoÉ, foi articulada pelo delegado Cuoco, com a ajuda do Cenimar, exatamente para evitar que a revista expusesse as atividades da tal agência privada de informações.

Em 1999, Anselmo falou também ao Percival de Souza, que fez outra reportagem igualmente extensa. As matérias-de-capa da IstoÉ e da Época foram expandidas para livros por Octávio Ribeiro e Percival de Souza. Seguramente Anselmo terá recebido uma boa grana nessas ocasiões.

Finalmente, em suas andanças recentes, o ex-marinheiro tem sido sempre escoltado pelo delegado Carlos Alberto Augusto, do 12º distrito de São Paulo.

Estavam juntos quando a rede Globo levou ao ar o Linha Direta com o Cabo Anselmo, há dois anos.

Juntos foram recentemente cumprir os requisitos para Anselmo reaver sua identidade.

E juntos se apresentaram no Canal Livre de domingo passado, quando os adesivos anticomunistas e golpistas do jipe do delegado causaram tal perplexidade nos profissionais da rede Bandeirantes que até no ar esse assunto foi levantado.

Quem é, afinal, o tutor de Anselmo?

De janeiro de 1970 a 1977, Augusto trabalhou sob as ordens diretas do terrível delegado Sérgio Paranhos Fleury no Dops/SP, quando era conhecido como Carlinhos Metralha, por andar amiúde com uma metralhadora pendurada no ombro.

Recentemente apontado ao Ministério Público Federal como torturador por Ivan Seixas, diretor do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, Carlinhos Metralha até hoje dá declarações deste tipo:

"Esses caras do governo [Lula] são todos sanguinários. Tudo comunista bandido e covarde. Estou à disposição dos militares na hora em que eles precisarem de novo".

Enfim, tudo leva a crer que Anselmo jamais tenha saído da órbita dos órgãos de segurança e das estruturas montadas por antigos torturadores. Não por acaso, tem o apoio incondicional dos sites de extrema-direita, como o Alerta Total, do Jorge Serrão.

Daí as consistentes suspeitas de que sua insistência em ser anistiado não se deva a precariedade material, mas seja, tão-somente, uma nova provocação, desta vez para desmoralizar a atuação da Comissão de Anistia e do próprio Ministério da Justiça.

Caso em que o tiro terá saído pela culatra, pois agora ninguém mais duvida de que ele haja sido um agente duplo ao longo de toda sua infame trajetória.

*
Jornalista, escritor e ex-preso político, Celso Lungaretti era companheiro de militância e amigo de José Raimundo da Costa, o Moisés, que foi preso numa armadilha do cabo Anselmo, levado para a Casa da Morte de Petrópolis (RJ), torturado e executado. Mantém os blogues Náufrago da Utopia e Celso Lungaretti - O Rebate



Sobre o mesmo assunto, leia também:
BOMBA! SEGUNDO EX-DIRETOR DO DOPS, O CABO ANSELMO JÁ ERA AGENTE DUPLO EM 64

PASTA DE VANNUCHI DENUNCIA PRÁTICAS HEDIONDAS DA POLÍCIA GAÚCHA

Celso Lungaretti (*)


Uma amiga virtual gaúcha, estudante de jornalismo, há muito me cobra uma condenação dos desmandos e arbitrariedades da governadora Yeda Crusius.

Eu vinha lhe pedindo paciência, pois detesto entrar em tiroteios entre os dois esquemas políticos que disputam a hegemonia no Brasil: o do PT e o do PSDB/DEM. [Quanto aos gelatinosos partidos mercenários, quanto menos falarmos neles, menos poluiremos o espaço virtual.]

Não vejo os esquemas lulista e tucano/demoníaco como solução para nada. Eles são, isto sim, o problema. Disputam a gerência do estado burguês, para fazerem cumprir os objetivos capitalistas. Nada mais.

Pouco se me dá se os banqueiros têm como representante de seus interesses no Palácio do Planalto, envergando a faixa presidenciual, um petista, um tucano ou um capeta. A política econômica neoliberal introduzida por Fernando Henrique Cardoso quando era ministro de Itamar Franco, atravessou inalterada os dois governos de FHC, o primeiro do Lula e o segundo também, até agora.

Então, se presidentes da República se prestam a iludir os cidadãos, fingindo tudo decidir quando só decidem o secundário e obedecem ao poder econômico no fundamental, não sou eu que vou coonestar essa farsa.

Quem não tem autonomia para contrariar o grande capital e os banqueiros não é, a bem dizer, um presidente. Está mais para rainha da Inglaterra.

E eu, plebeu convicto, nada tenho a ver com as intrigas da Corte, pois dela não participo nem quero participar. Ponto final.

Já as violações dos direitos humanos são outro departamento. Estas eu condeno sempre, seja quem for que as cometa.

Há quem me acuse de favorecer o PT, quando protesto contra o sinal verde que Serra deu para trogloditas fardados barbarizarem a USP.

Há quem me acuse de favorecer o PSDB, quando protesto contra o sinal verde que Lula deu para trogloditas fardados barbarizarem o morro da Providência.

Pouco me importa. Sou revolucionário: defendo princípios. Sempre.

Então, repudio com máxima indignação a tortura de crianças e o uso de choque elétrico na ação dos policiais militares do RS durante a reintegração de posse da fazenda Southall, no mês passado.

Mais: se Crusius não punir severamente os responsáveis, considero que este seja motivo suficiente para sua destituição do cargo.

Governante que compactua com práticas hediondas tem de ser remetido de volta às cavernas. Não serve para governar civilizados.

Faço minhas as conclusões da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que colheu depoimentos na semana passada em São Gabriel e constatou ter havido "emprego desproporcional e inadequado da força policial letal", com o uso ostensivo de cachorros e da cavalaria contra as famílias do MST e o lançamento de bombas a esmo, tanto que atingiram até crianças com seus estilhaços (um bebê foi ferido no rosto).

Quanto ao assassinato do sem-terra Elton Brum da Silva, baleado pelas costas, foi uma recaída na barbárie da qual pensávamos nos ter livrado em 1985, quando o Brasil saiu das trevas.

É simplesmente ultrajante que até o nome do carrasco esteja sendo sonegado da opinião pública pelo governo gaúcho. Quem comete um ato desses não merece privilégio nenhum, mas sim a execração da coletividade.

O relatório da Pasta de Paulo Vannuchi será encaminhado ao Ministério Público Federal e Estadual, à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, ao Ministério da Justiça e à Corregedoria Geral da Brigada Militar.

Espera-se que, desta vez, haja apurações isentas e punições compatíveis com a gravidade dos crimes.

Pois o acobertamento dos maiores culpados e as punições insuficientes de outras recaídas na barbárie (o massacre da Casa de Detenção à frente) contribuíram para a situação a que chegamos, em que nossas instituições estão absolutamente desacreditadas aos olhos do homem comum.

Se não começarmos a reverter esse quadro, mais dia, menos dia, as consequências serão funestas.

Ou a democracia brasileira consegue manter a aparência de que funciona a contento, passando a punir pelo menos os crimes flagrados, ou algum homem providencial acabará se oferecendo para restabelecer a moralidade pública com a imposição da ordem unida.

É simples assim.


*
Jornalista e escritor, mantém os blogues Náufrago da Utopia e Celso Lungaretti - O Rebate

CARTA AOS BRASILEIROS

ando o que está em jogo não é apenas o destino de um homem, mas sim a imagem que temos de nós mesmos como povo e como nação.

Construímos uma identidade nacional ao libertarmo-nos do jugo colonial e também ao optarmos por receber com braços abertos os imigrantes que buscassem abrigo entre nós, para contribuir na construção de um país livre, soberano e justo.

Foi assim que nos vimos e foi assim que nos apresentamos às demais nações:

* como um povo cordial e solidário, que a todos oferece uma oportunidade para aqui trabalharem, prosperarem e serem felizes; e
* como um país generoso e acolhedor, que se recusou a reproduzir a intolerância, o fanatismo e a mesquinhez do Velho Mundo, tanto quanto recusou os laços de subjugação política.

Esta nobre tradição tem expressão fiel em nossa Lei do Refúgio, de 1997, que orgulhosamente afirma: seus preceitos devem ser interpretados "em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido".

Foi obedecendo à letra e ao espírito da Lei do Refúgio que o ministro da Justiça Tarso Genro, como última instância, outorgou a Cesare Battisti o direito de viver em liberdade e dar sequência à sua carreira literária no Brasil.

É o que explica, de forma cristalina, o maior de nossos juristas, Dalmo de Abreu Dallari:

"De acordo com essa lei, cabe ao ministro da Justiça a decisão final sobre a concessão do refúgio, estando expresso no artigo 33 que 'o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão do refúgio', decisão da qual, segundo a lei, não cabe recurso.

"Assim, pois, no desempenho de suas atribuições legais o ministro da Justiça proferiu uma decisão, criando uma situação jurídica nova, o que não ocorreria com um simples parecer. Lamentavelmente, a imprensa fez confusão e tratou a decisão definitiva do caso como se fosse apenas um parecer do ministro, contribuindo para criar a ilusão de que o caso ainda não foi decidido e que o Supremo Tribunal Federal poderá julgá-lo concedendo a extradição".

Ou seja, há uma lei e ela foi obedecida; há uma jurisprudência firmada em episódios anteriores, quando o STF arquivou os pedidos de extradição a partir da decisão do ministro da Justiça; e o Supremo chegou até mesmo a discutir em 2007 se era ou não constitucional o citado artigo 33 da Lei do Refúgio, concluindo pela afirmativa.

No entanto, inconformada com a decisão legítima e soberana do governo brasileiro, a Itália de Berlusconi move céus e terras para impingir sua pretensão.

Além das inaceitáveis manifestações de achincalhamento das autoridades, instituições e até das mulheres brasileiras, de que tomamos conhecimento pela imprensa, governantes italianos chegaram ao cúmulo de exortar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a rever a decisão do seu ministro da Justiça, desprestigiando-o de uma forma só concebível em repúblicas das bananas.

Dignamente rechaçados, passaram a apostar todas as suas fichas no STF, tentando tangê-lo a anular uma Lei, desconsiderar a jurisprudência, criar um conflito de Poderes e sepultar as tradições humanitárias do povo e da Nação brasileira.

Este é o fulcro da questão: honraremos o sacrifício de Tiradentes, o sofrimento de todos que lutaram pela liberdade e o grito altaneiro de D. Pedro ou vamos deixar que o Velho Mundo novamente nos subjugue às suas imposições e aos seus rancores?

Pois o Brasil não sentencia ninguém à prisão perpétua, muito menos com a inacreditável privação da luz solar, uma recaída nas práticas mais desumanas do passado europeu, como as da Santa Inquisição.

Pois o Brasil anistiou seus perseguidos políticos em 1946 e 1979, no máximo década e meia depois dos episódios que deram pretexto às condenações, enquanto a Itália insiste em manter vivas as feridas dos anos de chumbo e quer jogar um homem inofensivo numa masmorra pelo resto da vida em razão de episódios ocorridos há mais de 30 anos.

Pois o Brasil admitiu sua responsabilidade pelos excessos cometidos por governos autoritários contra seus cidadãos e civilizadamente lhes pediu desculpas e ofereceu reparações, enquanto a Itália continua negando até hoje as torturas praticadas contra prisioneiros da ultra-esquerda durante os anos de chumbo e defendendo os absurdos jurídicos nos quais incidiu, como a aceitação incondicional dos testemunhos de delatores premiados, a retroatividade da Lei e até a possibilidade de manter acusados em prisão preventiva por mais de 10 anos.

E é simplesmente ultrajante que a Itália nos considere tão ingênuos a ponto de acreditarmos que movimentos de contestação envolvendo cerca de diferentes 400 grupos de ultra-esquerda, ao longo da década de 1970, tenha se constituído em atividade criminal e não fenômeno político!

Pois é isto que a Itália passou a afirmar quando percebeu que, pela Lei do Refúgio, Battisti jamais poderá ser extraditado em razão de crimes porventura cometidos no curso de sua militância política (na verdade, falsas acusações contra as quais não pode exercer seu direito de defesa).

Então, depois de emitir contra ele sentenças especificando claramente que se tratava de crimes políticos, capitulados em lei introduzida para o combate à subversão contra o Estado, recorre agora a tergiversações e malabarismos para tentar convencer-nos de que não foi bem assim, muito pelo contrário...

Por tudo isso, nós, brasileiros, esperamos que os ministros do STF sejam coerentes com a Lei, com a jurisprudência, com nossas tradições humanitárias e com nossa dignidade de nação soberana, reconhecendo o refúgio concedido a Cesare Battisti e determinando sua imediata libertação.

Setembro de 2009

CELSO LUNGARETTI
Jornalista, escritor e ex-preso político

UMA ANÁLISE APROFUNDADA DO CASO BATTISTI: IMPORTANTÍSSIMA!

UMA ANÁLISE APROFUNDADA DO CASO BATTISTI: IMPORTANTÍSSIMA!

Aos brasileiros empenhados em que se faça justiça no Caso Battisti, estou repassando a (provavelmente) mais completa e exaustiva análise já feita sobre o caso sob a ótica da defesa dos direitos humanos e de acordo com a visão das entidades internacionais que cuidam de sua proteção.

É importantíssimo que o máximo de cidadãos tome conhecimento deste documento. Peço a todos um esforço solidário no sentido de fazê-lo chegar a veículos de imprensa e de internet, bem como aos formadores de opinião e aos juristas e suas entidades.

Seu autor, Carlos Alberto Lungarzo, foi professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (está aposentado) e é membro de Anistia Internacional dos Estados Unidos. E-mail: carlos.lungarzo@gmail.com

A reprodução, citação e repasse estão autorizados pelo autor.

CELSO LUNGARETTI

Uma Breve Análise do Caso Battisti
Carlos Alberto Lungarzo
Professor Titular do IFCH da Unicamp (aposentado)
Membro de Anistia Internacional dos Estados Unidos (AIUSA)
São Paulo, 2009-08-31
carlos.lungarzo@gmail.com



O caso Battisti tem movido numerosas paixões radicais que não podem ser analisados num breve espaço. A animosidade ou, então, a objetividade duvidosa de grande parte da mídia possui um alvo preciso: o leitor de classe média e alta, aquele que se identifica com a repressão, sob os efeitos do que Wilhelm Reich chamava praga emocional, com a qual explicava o apoio deste setor ao nazismo.
As motivações do governo da Itália, embora muito evidentes, não podem tampouco ser analisadas sem um considerável desvio do assunto principal. A posição do TSF, que tem aparecido publicamente contrário ao asilo do perseguido italiano, deve ter motivações muito complexas, de tipo social, político e psicológico, mas não poderíamos estudá-las de maneira totalmente objetiva com base em simples conjeturas.
O que faremos nesta breve análise é um exame objetivo dos fatos, colocando ênfase nas contradições, omissões, imprecisões e afirmações falsas dos setores sociais que se opõem ao refúgio dado a Battisti, ou criticam a forma em que ele foi concedido pelo ministro Tarso Genro. Para tanto, vou evitar qualquer comentário ideológico e qualquer manifestação sobre o caráter ético dos movimentos revolucionários da década de 70 na Europa. Desejo me cingir a fatos provados por fontes mediáticas, documentais ou declarações de domínio público, nos aspectos seguintes:
1) Analisar os argumentos de alguns membros do STF contra a concessão de asilo, mostrando as contradições internas dos mesmos, a inconsistência com a jurisprudência anterior, sua incompatibilidade com a tradição brasileira, e com princípios e acordos internacionais e regionais.
2) Mostrar o caráter duvidoso de que a autoria dos crimes que provocaram a condena de Battisti seja realmente sua, como, por exemplo, no caso de duas mortes, cometidas em duas cidades diferentes, em horários muito próximos.
3) Mostrar os desvios da Convenção Americana de Direitos Humanos e toda a legislação humanitária atual, bem como dos princípios básicos de ética jurídica, dos quais um exemplo importante é a forma em que o STF deixou transparecer que sua intenção era condenar ao réu, já nos começos de 2009.
4) Analisar a violação à divisão de poderes, ao direito de ampla defesa, à garantia de julgamento isento, ao direito de resposta, e assim em diante.
Como membro da Anistia Internacional dos Estados Unidos, devo destacar que nossa organização não possui uma linha definida sobre o caso Battisti. Anistia Internacional (AI) costuma, antes de se manifestar sobre cada assunto, fazer uma exaustiva pesquisa. Isso é o que dá valor a nossos relatórios e tem feito que nossa opinião seja admirada ou odiada, mas nunca esquecida. Em 2005, até o presidente G. W. Bush, irritado pelo relatório de AI sobre as torturas no Iraque, pretendeu desprezar publicamente a denúncia, mas não conseguiu. Acabou tendo que aceitar sua existência e tentar que o portavoz da Casa Branca fizesse uma tentativa de refutação.
A seriedade de nossa organização se viu desafiada muitas vezes, inclusive porque trabalhar por um mundo mais humano exige relacionar-se, e nem sempre podemos manter distância física de organizações que também defendem os direitos humanos, mas se subordinam algumas vezes a uma linha política. Entretanto, estes desafios foram superados. AI criticou as violações dos DH em todos os países, qualquer que fosse sua ideologia, mas sempre no contexto correto. Manifestamos preocupação de que certas formas de liberdade de expressão fossem diminuídas, mas nunca dissemos que isto fosse equivalente a tortura ou genocídio. Abstivemo-nos de entrar em polêmicas interesseiras sobre o direito de propriedade dos monopólios da comunicação e fatos semelhantes.
Se nossos pesquisadores não puderam chegar a uma conclusão sobre o caso Battisti, é porque isso teria requerido uma dedicação maior da que AI podia dispensar. Com efeito, América Latina em geral, e Brasil em particular, são alvo da preocupação de Anistia, por causa de alguns problemas urgentes e de dimensão esmagadora: a extremada brutalidade policial, que mata de maneira sistemática habitantes das favelas, incluindo mulheres e crianças, chacinas massivas, tráfico de pessoas, prostituição infantil, genocídio seletivo das classes pobres, e outros assuntos de enorme projeção. Não houve, lamentavelmente, tempo e equipe para se debruçar exclusivamente sobre o caso Battisti, embora todos os casos onde exista uma possível violação aos DH devessem merecer atenção.
Para um olhar externo, o perseguido italiano parece ter sido tratado de acordo com a lei internacional, numa forma não especialmente cruel. Não está desaparecido e possui o direito de utilizar advogados. Portanto, mesmo que os pesquisadores de AI sejam muito conscientes e dedicados, nem sempre podem perceber assuntos mais sutis que são visíveis para os que moramos no país. Refiro-me à prisão ilegal e injustificada; a conivência do relator do processo com o governo italiano, ao qual pede “permissão” para qualquer decisão; as comunicações mediáticas do presidente do STF e do decano dos ministros, instilando na opinião pública a idéia de que Battisti é culpado, e assim em diante.
Portanto, minha análise deste caso é pessoal, e não foi submetida a meus superiores em AI.
1. As “Sofisticações” Jurídicas
A Validade da Condena
Membros do STF têm manifestado várias vezes que a condena de Césare Battisti pelos tribunais italianos não deve ser discutida. Quase todos os argumentos em favor desta “confiança cega” estão baseados no dogmatismo mais radical, e pode resumir-se na frase: “não podemos julgar os critérios jurídicos de outros países”.
Os que desejam se submeter à autoridade do senhor, como no século 13, que o façam, mas podemos pedir deles um mínimo de decência: reconheçam que esta subserviência implica, de maneira imediata, na inutilidade da instituição do asilo, que, portanto, deveria ser derrogada!
Com efeito:
Todos os países têm sistemas judiciais, alguns quase perfeitos, como o de Noruega, outros aberrantes, como o de Irã. Então, qualquer possível perseguido que peça asilo (salvo no caso infreqüente dos declarados apátridas) pertence a um país cujo poder judicial, bom ou ruim, teria condições de julgá-lo. Por exemplo, um perseguido sudanês, em vez de ser recebido como asilado, deveria ser repatriado ao Sudão para ser julgado lá. Salvo no caso de apátridas, ninguém deveria ser asilado: qualquer candidato seria devolvido com o conselho “Confie na justiça de sua pátria, meu amigo!”. A miséria mental deste argumento não precisa de comentário.
Asilo ou Refúgio?
Alguns magistrados afirmam que a proteção concedida pelo ministro Tarso Genro foi injustificada, porque Battisti teria sido declarado refugiado, mas, na realidade, a figura jurídica que se lhe atribuiu foi o asilo. Segundo alguns membros do TSF isto invalidaria o direito dado. A justificação é tão confusa e bizantina que é impossível entender o que está sendo proposto. Veja o comentário de um ministro do STF neste site:
www.paulohenriqueamorim.com.br/?p=15883
Será que Battisti deve ser punido porque mentiu, ou seja, ele aceitou ser refugiado e de fato, é asilado? E será que essa mentira merece, como castigo, a deportação e a cadeia perpétua?
Vejamos:
É trivialmente conhecido que o refúgio é aplicável a perseguições ou catástrofes massivas geradas pelas discriminações e pelas opiniões políticas, avaliando a média do risco geral do grupo, com independência da vulnerabilidade individual de cada membro. Além disso, usualmente o refúgio se concede desde fora do país dos refugiados e com base em convenções internaiconais, mas isto é relativo, como o mostram numerosos exemplos bem conhecidos.
Por sua vez, o asilo, especialmente na forma Latino-Americana, é uma proteção individual para alguém especificamente perseguido e sobre cujos riscos existe quase-certeza. (A certeza absoluta, obviamente, é impossível, salvo que os políticos acreditem em predestinação.)
Um raciocínio simples mostra, então, que o asilo é um caso particular do refúgio. Um asilado é o refugiado considerado individualmente (fora da massa de pessoas que mereceria, por motivos parecidos, a mesma proteção), e cuja evidência de correr risco é bem maior do que a média.
Exemplos:
Durante as ditaduras neofascistas da América Latina nos anos 70 e 80, países europeus como Alemanha, Suécia, Noruega, Suíça, Holanda, Bélgica e França deram proteção a cidadãos chilenos, uruguaios e argentinos. Em todos os casos, se aplicou a instituição de refúgio, já que o conceito de asilo é pouco usado fora das Américas. O asilo estrito foi concedido pelo México e o Equador. Essas pessoas foram adotadas às vezes em grupo, por provir de um país designado (como Argentina ou Chile), mas também com base na investigação pessoal de cada caso. Houve então uma mistura de asilo e refúgio, o que mostra que ambos não são excludentes.
A maneira em que o STF tenta contrapor-los, para aplicar-lhes direitos diferentes, carece de sentido. No Brasil, nos últimos anos, houve várias pessoas que foram protegidas através do ACNUR; portanto, tecnicamente eram refugiados. Mas foram acolhidos depois de um estudo individual, com base no grau de perigo que cada de um deles corria. Outra possibilidade é que a Excelência que escreve sobre o assunto esteja acusando Tarso Genro de má fé, porque deu asilo (nas palavras do Meritíssimo) sob o disfarce de refúgio. Ora, algo puramente semântico pode anular um ato jurídico? Se um matador serial for detido, e em seu BO é indiciado por “assassinato” e não por “homicídio”, será que deveria ser anulada a apreensão?
Estou apresentando estes casos, porque eles mostram muito bem o enfoque do STF. Este e outros ministros não parecem interessados em fazer justiça a um acusado de crimes não provados. Trata-se de encontrar qualquer pequeno detalhe sintático ou semântico que possa derrubar o refúgio (ou deveria dizer “asilo”?).
2. Os Julgamentos na Itália
Os Fatos Iniciais
Os fatos que originaram a perseguição de Battisti são bem conhecidos. Apenas quero elencá-los para citá-los posteriormente.
O grupo ao qual Battisti pertenceu se chamava Proletários Armados para o Comunismo (PAC), e foi fundado no Norte da Itália em 1976, depois de ter-se desprendido do movimento Autonomia Operária. O PAC tinha uma política contrária à verticalização das Brigadas Vermelhas, com as quais nunca manteve relacionamentos.
No começo, estava integrado por uma maioria de operários, desempregados, intelectuais e professores jovens. O grupo nunca foi expressivo e não representou perigo comparável ao de outros movimentos, pois se supõe que não ultrapassou os 60 membros. Autodissolveu-se em 1979.
Durante esses três anos de atividade, as principais ações do PAC foram:
1. Roubos de diversa dimensão para financiar seus operativos.
2. Sabotagens contra empresas que usavam mão de obra sobreexplorada
3. Ataques contra indivíduos ou grupos que utilizavam tortura contra detentos, trabalhadores, estudantes, etc.
4. Ataques contra bandas corporativas que faziam “justiça privada”, especialmente esquadrões da morte formados por empresários, que matavam indiscriminadamente marginais, usualmente ladrões desarmados de pequeno porte, e também mendigos e desempregados.
Os atos do PAC não causaram vítimas, salvo quatro homicídios que o próprio PAC assumiu, relativos às seguintes pessoas:
1. Antonio Santoro, carcereiro, acusado pelo PAC de ter torturado presos. Morto em 06/06/78, em Údine.
2. Pierluigi Torregiani, joalheiro, acusado pelo PAC de ter matado um ladrão desarmado ajudado por outros membros de um grupo de extermínio que aparentemente chefiava. Morto em sua loja de Milão em 16/02/1979.
3. Lino Sabbadin, açougueiro, membro de um partido neofascista, acusado pelo PAC de delação e intimidação contra membros da esquerda. Morto também em 16/02/1979 in Santa Maria di Sala, Veneza.
4. Andrea Campagna, agente do DIGOS (um equivalente italiano dos antigos DOPS brasileiros) conhecido por praticar ações de terror e provocação em passeatas e reuniões pacíficas da esquerda. Foi executado em Milão em 19/04/1979.
Referências
EVANGELISTI, VALERIO: Valerio Evangelisti Répond à 50 Questions.
VARGAS, FRED: Cesare Battisti : À la recherche de la justice perdue in La Règle du Jeu, n°30 (01/2006)
A Detenção de Battisti
Como o PAC assumiu a autoria daquelas execuções, seus membros ficaram sob suspeita. Em 26/02/1979, Battisti foi detido e julgado. Foi acusado de guardar armas e de participação em grupo armado. Por esses delitos foi condenado a 12 anos e 6 meses de prisão. Para incriminar Battisti foi utilizado o testemunho de militantes “arrependidos”, que se beneficiaram da delação premiada.
Observação:
Em 26/02/1979, já tinham sido cometidos três dos assassinatos do PAC (número 1 a 3, acima). Dois deles aconteceram de maneira simultânea 10 dias antes, causando enorme impacto na opinião pública. Portanto, o assunto estava a flor de pele, e mantinha mobilizados todos os serviços de investigações. Por que, então, Battisti não foi indiciado como suspeito dessas mortes? Se ele tinha participado nos assassinatos, sendo que o PAC tinha poucos membros, teria sido natural que a polícia o investigara por aqueles crimes. Em vez disso, se limitaram a condená-lo por pertencer a uma agrupação ilegal e ter armas em seu poder. Isso significa que, naquele momento, as autoridades ainda não tinham entendido a vantagem de acusar Battisti.
Parece, portanto, que a idéia de acusar a Battisti daqueles 4 crimes surgiu depois, por razões diversas.
Em 02/10/1981, Battisti fugiu da prisão. Viajou a Paris e depois a México. Voltou a França em 1990, iludido por uma declaração do Presidente Mitterrand que prometia proteger da extradição os guerrilheiros italianos arrependidos.
Por pedido da Itália, foi detido na França em 1991, e passou 5 meses preso. Em maio desse ano, o Tribunal de Apelações de Paris rejeitou o pedido de extradição da Itália e foi liberado.
Na época, a justiça francesa decidiu que:
1. A legislação antiterrorista italiana era contrária aos princípios franceses de direito.
2. Que o julgamento em ausência era contrário aos princípios da Corte Européia dos Direitos Humanos.
Entretanto, em 2005, com a direita no poder, o compromisso de Mitterrand foi violado, e a extradição de Battisti foi concedida.
Referências
Cesare Battisti: dire la vérité, respecter les droits. Human Rights League (LDH), public statement of March 17, 2007
O Julgamento “Virtual”
Como já foi mencionado, no 1º julgamento do Battisti, em 1979, ele não foi acusado de participação nos crimes do PAC, mas apenas de formação de quadrilha e porte de armas.
Dos 4 homicídios que o PAC tinha assumido, o do carcereiro Santoro foi cometido, segundo própria confissão, pelo ativista Pietro Mutti. Este foi arrestado em 1982, quando Battisti estava fora da Itália.
Mutti pediu ser considerado “arrependido” e receber o benefício da delação premiada. Denunciando colegas de organização, ganhou vários anos de redução na pena. Acredita-se que Mutti não cumpriu mais do que oito anos. (Os detalhes exatos não foram confirmados porque Mutti desapareceu).
Mutti acusou a Battisti de ter participado ativamente nos quatro homicídios assumidos pelo PAC.
Observações:
Há várias conjecturas de por que Mutti acusou quase exclusivamente a Battisti e lhe culpou de todos os crimes. A escritora Vargas sugere que Mutti o escolheu por estar fora do país, o que tornava mais difícil encontrá-lo, e impossibilitava sua defesa. Outras pessoas opinam que houve motivos pessoais. Talvez possa ter influído o fato de ser uma pessoa intelectualmente melhor dotada que os outros ativistas. A polícia e a justiça italiana podem ter entendido que transformar Battisti em bode expiatório poderia ser eficaz para intimidar o resto da esquerda.
Parecendo acreditar nas acusações de Mutti e alguns outros, a Corte de Milão re-abriu o processo de Battisti em 1987, e o acusaram agora de autor dos quatro homicídios. Inicialmente, a polícia tinha declarado que o réu teria matado Santoro, Campagna e Sabbadin, e participado do grupo que matou Torregiani.
Estas declarações criaram alguma confusão. Como veremos na seção seguinte, as mortes de Sabbadin e Torregiani se produziram com uma hora e meia de diferença, em duas cidades separadas por três horas de viagem!
Talvez, por essa razão, as declarações de Mutti foram corrigidas pelos promotores, e apareceram desta maneira no processo: Battisti foi acusado da morte de Santoro, Campagna e Sabbadin, e de ter idealizado a de Torregeani, que teria sido executada por outros.
Battisti foi sentenciado em ausência, quando se encontrava no México em 1988, sem ter conhecimento do processo. Numa apelação de 1993, foi confirmada sua condena a prisão perpétua e privação de luz solar.
Mutti tinha acusado a Battisti de ter um cúmplice nestes assassinatos. Acredita-se que Mutti inventou esse cúmplice para tornar mais verossímil a culpabilidade de Battisti. A Corte anulou a investigação sobre este cúmplice para não evidenciar a farsa.
Referências
Section de Toulon de la Ligue des droits de l’Homme, lundi 19 mars 2007
www.ldh-toulon.net/spip.php?article1940
Contradições, Falhas e “Montagens”
Dois dos quatro assassinatos aconteceram no dia 16 de Fevereiro de 1979; um deles, em Milão, às 15:00 horas, e o outro em Caltana di Santa Maria di Sale, em Veneza, às 16:50 horas. Quando Mutti acusou a Battisti dos 4 assassinatos, incluindo estes dois, possivelmente a polícia e o Ministério Público não repararam na coincidência de horários: para ter cometido ambos os assassinatos, Battisti precisava um helicóptero, algo absurdo para uma organização sem recursos. Veja o mapa:
O traço roxo mostra a distância entre a cidade de Milão e Caltana di Santa Maria di Sala, em Veneza. Em 2009, a duração média da viagem se calcula em 3 horas e 25 minutos. Seria sensato supor que há 30 anos esse tempo fosse um pouco maior.

A acusação de Mutti foi difundida nos boletins da polícia, mas logo, quando a confissão do delator foi assentada no processo, alguns dados foram retificados. Já Battisti não era acusado de ação material contra Torregiani, mas da idealização do crime. Isto mostra que as autoridades tomaram consciência de que era impossível acusar Battisti de ter estado ao mesmo tempo nos dois cenários.
Grande maioria da opinião pública francesa (embora não existam estatísticas sobre seu tamanho) entendeu que o julgamento de Battisti foi uma farsa, onde os depoimentos foram forjados e as provas inventadas. Com efeito:
1. Durante o julgamento de Battisti de 1979, outros membros do PAC que tinham participado dos homicídios, confessaram sob tortura o nome de seus cúmplices, mas nenhum deles mencionou a Battisti.
2. Battisti era considerado no PAC como um ativista novo, incumbido de tarefas menores, como guardar armas ou documentos.
3. Durante as investigações de 1988/87, guerrilheiros torturados (que não foram beneficiados pela delação premiada) acabaram concordando com as declarações de Mutti. Isto prova que a polícia e o MP já tinham como objetivo culpar a Battisti dos homicídios, uma idéia que ainda não existia, segundo parece, em 1979.
4. As testemunhas principais (Mutti e um colega seu, Dante Fatone) tinham virado delatores profissionais, que obtiveram grandes reduções de suas penas. Foram partes interessadas na condena.
5. As testemunhas “externas” que o MP apresentou mostravam sintomas evidentes de transtorno mental. Supõe-se que o MP convenceu a alguns pacientes afetados de paranóia e delírio para que declarassem contra Battisti.
6. Todos os exames de balística feitos pelos peritos oficiais indicavam que os projéteis pertenciam a armas em poder do Battisti. No entanto, a polícia não pôde impedir que alguns técnicos independentes fizessem perícias em separado; todas elas foram negativas.
7. O mesmo aconteceu com perícias grafológicas, que, segundo os técnicos oficiais, mostrariam que Battisti teria dado ordens por escrito vinculadas àquelas mortes.
8. As 13 acusações recebidas foram produzidas, em 8 casos, por ex-acusados que repetiram os argumentos de Mutti e, nos outros 5, por familiares das vítimas. Todas elas foram arquivadas sem análise e usadas como provas posteriormente. Diferentemente do que acontece em qualquer processo, as declarações das diversas “testemunhas” não eram complementares, mas cada uma repetia exatamente as outras.
9. Não foi indicada nenhuma testemunha ocular que pudesse ser considerada neutral (por exemplo, alguém que estava por acaso no lugar dos crimes), nem se mostraram fotos, fitas filmadas ou quaisquer outras provas.
10. O mais importante: falta de defesa. Battisti foi julgado em ausência quando estava no México e, segundo se supõe, nem sabia que seu processo tinha sido aberto. Como é bem conhecido, México não é um país especialmente vinculado com a Itália, como o Brasil ou a Argentina. O julgamento era uma notícia local sem importância internacional e talvez nunca foi publicada em jornais mexicanos.
11. Usurpação: Battisti tinha dois advogados do processo anterior de 1979. Esses dois advogados foram detidos em 1988, com diversos pretextos, e mantidos um curto tempo presos, até que o Ministério Público nomeou um novo advogado. Esse era também o advogado de Pietro Mutti, o principal acusar de Battisti. Para constar nos autos, ele apresentou uma procuração que dizia ter sido dada por Battisti, mas, segundo foi conferido depois, era falsificada.
A influente organização francesa LDH (Liga dos Direitos Humanos) tem enfatizado a forma exageradamente abusiva em que Battisti foi condenado :
1. Não houve provas materiais de nenhuma espécie. Laudos balísticos e outras perícias foram inventados.
2. As testemunhas centrais foram dois arrependidos, que foram retribuídos com diminuições nas penas. Trata-se, simplesmente, de mercenários.
3. De acordo também com a Corte Européia dos Direitos do Homem, um processo a um acusado por contumácia é contrário aos DH. Com efeito, é um princípio básico da justiça o direito de defesa. Ora, ninguém pode defender-se se não está no local do julgamento nem, muito menos, quando nem sabe que está sendo julgado.
Observações:
Não é totalmente claro por que a justiça e a polícia escolheram Battisti como bode expiatório. Existem várias conjecturas. A mais aceita é que outros presos, fosse por tortura ou por benefícios prisionais, teriam aceitado colaborar. Se a polícia os indiciava perderia futuros espiões ou infiltrados. Culpar a alguém que não estava presente permitiria completar o ciclo (indiciamento, acusação, condena) e daria um bode expiatório aos parentes das vítimas da violência.
Com efeito, já na época havia uma forte organização de familiares de vítimas da violência dos “Anos de Chumbo”. Sem emitir opinião sobre a causa da violência, é necessário dizer que houve mais vítimas do lado popular (operários, ativistas, estudantes) que do lado da repressão (policiais, militares, matadores de aluguel). Entretanto, esta organização de vítimas representa apenas aos familiares de agentes da repressão, considerados “heróis”. Os outros são considerados “bem mortos”.
Referências
VARGAS, FRED: Cesare Battisti: A la recherche de la justice perdue, in La Règle du Jeu, n°30 (Janeiro 2006)]
VEJA, edição 2097, ano 42, nº4, 28 de janeiro de 2008.
Fontes Originais
Os únicos documentos que Itália tem disponibilizado ao público em forma de fotocópias são três sentenças contra Battisti (de 1988, 1990 e 1995) e um histórico do processo, completado no ano 2003.
Os quatro se encontram no site:
Associazione Italiana Vittime del Terrorismo e dell'Eversione Contro l'Ordinamento Costituzionale dello Stato
www.vittimeterrorismo.it
Este site é mantido por uma organização de familiares de policiais, militares e outros agentes de Estado Italiano, que foram mortos durante os atos de violência da década de 70. Não inclui nenhuma vítima do lado civil ou popular, aos quais os donos deste site consideram “assassinos”, “terroristas”, “criminosos” e coisas do gênero. Portanto, ninguém deve temer que este site tenha qualquer inclinação de esquerda. Muito pelo contrário, no melhor dos casos mantém uma forçada neutralidade e em outros casos se prodiga em mensagens de ódio. Assim sendo, não há motivo para pensar que os documentos aí locados possam ser escolhidos para favorecer a esquerda.
Os quatro documentos mencionados se encontram nas seguintes páginas:
www.vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1988.pdf
www.vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1990.pdf
www.vittimeterrorismo.it/archivio/atti/PAC_iter_storico.pdf
www.vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1993.pdf
As sentenças são longas, mas estão escritas numa linguagem menos pernóstica que a empregada no direito brasileiro. O iter histórico é bastante transparente. Apesar de demandar algum tempo de leitura, estes documentos mostrarão ao leitor que não existem propriamente provas que fundamentem as sentenças, e que todas as acusações se apóiam, quase completamente, nas delações de Mutti e Fatone, aos quais os magistrados fazem alguns elogios surpreendentes.
3. A Detenção Arbitrária
Battisti no Brasil
Já na França desde 1990, Battisti, que sempre se declarou inocente, deve ter sentido o perigo quando a política oficial virou à direita. Em agosto de 2004, passou novamente à clandestinidade.
Finalmente, num clima de perseguição e ameaça viajou ao Brasil, onde foi arrestado em Rio de Janeiro, no dia 18 de março de 2007, por um comando formado por policiais brasileiros, italianos e franceses e membros da Interpol. A Liga dos Direitos do Homem da França, junto com outras organizações de Direitos Humanos e numerosas entidades independentes, tem mostrado que a polícia francesa estava coordenada com a brasileira e italiana para tender uma cilada a Battisti, que foi praticamente seqüestrado.
Observação: Este procedimento é familiar à polícia brasileira, que o utilizou durante a ditadura para capturar vítimas de governos de países vizinhos que fugiam do genocídio. Também se aplicou em 1989, em plena democracia, com o argentino Fernando Carlos Falco, que vinha sendo perseguido por grupos policiais argentinos. (Sobre este ponto daremos mais informação na seção 6).

Esta detenção foi, em si mesma, contrária à Convenção Americana de Direitos Humanos, que proíbe arrestar a estrangeiros que se internam num país fugindo de perseguição em outros, e que podem ter status migratório irregular porque, obviamente, a situação de perseguido lhes impede obter um visto normal.
Refúgio: Conare & Tarso Genro
No Brasil, o Conselho Nacional para os Refugiados (CONARE) é uma dependência do Ministério da Justiça, cuja missão consiste em analisar os pedidos de refúgio, deferi-los ou indeferi-los, auxiliar os refugiados, determinar o fim da validade da condição de refugiado, e assuntos conexos. O CONARE é presidido por um representante do Ministério de Justiça e se forma com representantes de vários ministérios, da Polícia Federal, da ONG católica Cáritas, e do Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Há vários pontos obscuros na CONARE: o membro do ACNUR, que é o organismo de refúgio por excelência, tem apenas direito de voz, mas não de voto. Aliás, a presença de vários ministérios e da polícia faz pensar que o refúgio não está tratado como uma questão humanitária, mas como uma imigração não convencional. A rejeição de refugiados de países com população baixamente qualificada (como os romenos, no ano 2000, e diversos africanos) confirma essa suposição.
Em novembro de 2008, o Conare rejeitou um pedido de refúgio de Battisti. A negativa se impôs por um voto. No começo tinha um empate 2x2, sendo um dos votos contrários do Ministério de Relações Exteriores e o outro, como é natural supor, da polícia. O Ministro de Justiça, Tarso Genro, ordenou ao representante de seu ministério desempatar pela negativa. Nesse ato, Genro manifestou que ele poderia vetar o parecer do CONARE e refugiar Battisti, e queria mostrar que era capaz de fazer-lo! Em janeiro de 2009, Genro revogou o parecer do Conare e concedeu o refúgio requerido em grau de recurso.
O CONARE está regulado pela lei 9.474/97, que estabelece sua subordinação direta ao Ministro de Justiça. Suas decisões podem ser revistas mediante recurso ao próprio ministro. Este fato não tem nada de irregular, sendo muito frequente que colegiados de tipo consultivo devam ter suas decisões confirmadas ou retificadas por uma autoridade executiva. Entretanto, a decisão de Genro de revogar o parecer do Conselho provocou na direita um conjunto exorbitado de manifestações histéricas.
Com efeito, Genro foi acusado por esses grupos de ter atuado de maneira ideológica e até arbitrária. Comunicadores sensacionalistas, corporações de ultradireita, partidos políticos gerados pela antiga ditadura, leguleios e bacharéis indignados, e toda a coreografia conservadora se uniu na “santa cruzada” do revanchismo. A falência mental de alguns intérpretes (veja, por exemplo, o jornal eletrônico Consultor Jurídico, www.conjur.com.br/2009-fev-20/conceder-refugio-tarso-genro-foi-alem-lei) foi tão grande que acabou incorrendo em contradição: afirmaram que o ministro tinha ido além da lei, enquanto os próprios difamadores, ao analisar os artigos da Lei de Refugiados, reconheciam que a autoridade do ministro como instância de recurso aparecia claramente no texto.
Qualificação de Asilado
Para alguém ser qualificado como asilado se precisa uma alta probabilidade de que, no caso de voltar a seu local de origem, corra grave risco. No caso de refugiados, a existência de risco exige uma probabilidade menor.
No caso de um asilado, a perseguição e o perigo são personalizados. A pessoa que se asila possui uma quase certeza de que está sendo procurada e que, se atingida, será objeto de morte, tortura ou prisão. No entanto, observe que esta diferença não é tão grande. Como dissemos antes, o asilo é, na prática, uma forma especializada de refúgio. Mesmo as organizações internacionais muitas vezes misturam o termo “asilado” com “refugiado”. Embora exista diferença conceitual, o importante, desde a perspectiva do direito humanitário, é a proteção do perseguido. Em muitos casos, o perigo que enfrenta um refugiado e um asilado pode ser o mesmo.
Então, uma condição para que Battisti qualifique como asilado (ou refugiado) é a existência de perigo na Itália. Ora, de que tipo seria esse perigo? Os organismos internacionais consideram que é suficiente o perigo de perder a liberdade.
Ora, no caso de Battisti, não existe a mínima dúvida de que ele perderia a liberdade. Itália o condenou a prisão. Saber que ele vai ser preso sob condições subumanas não é uma conjetura; é uma certeza!
Portanto, os que exigem “provas” de sua perseguição e do grave risco que correria na Itália, pensam que a prisão perpétua não seria um perigo, mas um castigo justo e necessário. Este “arrazoado” (ou seja, “argumentação”, na gíria leguleia) é uma cínica manifestação de preconceito. Novamente, como foi dito na seção 1, este tipo de raciocínios tornam inútil o asilo. Para que asilar a alguém cuja culpabilidade se aceita por subserviência?
Mas, Battisti também tem argumentado que enfrenta risco de morte. Alguns membros do CONARE afirmaram que não havia certeza de que ele pudesse ser assassinado. Veja a seguinte página de Internet.
www.newstin.com/tag/us/118485734
Obviamente, não pode existir uma garantia de 100% de que um asilado que é vítima de refoulement, vai ser morto. Por exemplo, em 1984, o ex-presidente de Uruguai, Wilson Ferreira Aldunate, voltou a Montevidéu durante a ditadura. Ele foi apenas detido e não foi submetido a tortura, enquanto muitas pessoas, incluídos presidentes de outros países, temiam por sua vida. Salvo que o perseguido tenha sido, oficialmente, condenado a morte, é ridículo pensar que os que se propõem matá-lo vão produzir um atestado prometendo isso.
No caso de Battisti parece muito provável o risco de morte. Simular um acidente numa prisão é um artifício trivial, que na Itália foi usado várias vezes, inclusive com pessoas menos perigosas, como se descreve na obra Morte Acidental de um Anarquista do prêmio Nobel Dario Fo. Aliás, Itália possui características culturais especiais em Ocidente, como a de ser o primeiro país que teve sociedades criminosas organizadas e foi capaz de exportá-las às Américas, onde esse problema não existia. Também, a tradição das vendettas no Sul tem-se mantido durante séculos, e não há certeza de que apenas 30 anos façam que os policiais italianos esqueçam o ódio pela esquerda.
Deve levar-se a sério que os sindicatos de agentes penitenciários se tenham manifestado contra Battisti, depois de 28 anos que ele saiu da Itália. Um caso concreto o oferece a chamada Associazione Italiana Vittime del Terrorismo (www.vittimeterrorismo.it), conhecida pela sigla AIVITER. Esta afirma reclamar justiça pelos danos sofridos por policiais e militares, mas em seu discurso predomina a mensagem de ódio: enaltecer a repressão, santificar torturadores e apresentar como criminosas às vítimas civis.
A outra condição para ser asilado deve ser o caráter político dos crimes que realmente cometeu (não daqueles que foram forjados). Esses crimes são: formação de quadrilha, guarda de armas, roubos com finalidades políticas, pertinência a organização de luta política violenta. Todos esses delitos foram considerados políticos pelo STF até 2006 (veja seção 6).
Mas, agora, alguns membros do STF parecem achar que toda aquela jurisprudência tornou-se, bruscamente, errada.
4. Parcialidade contra o Asilo
Intromissão Italiana
O Embaixador da Itália no Brasil, Michele Valensisi, manteve uma conversa privada com o presidente do STF, Gilmar Mendes, no dia 20 de janeiro de 2009. A reunião entre ambos esteve rodeada de excepcional mistério, como se descreve nos jornais da época. Vide, por exemplo:
www.ultimainstancia.uol.com.br/noticia/61278.shtml
O sigilo em torno deste encontro, que foi encerrado de maneira críptica, com a saída do embaixador por uma porta secreta, e a negativa das assessorias de imprensa de ambos a comentar o evento, é inusitado inclusive em reuniões de cúpula entre altas autoridades. Apesar de todo este circo, se supõe que Valensisi pediu garantias a Mendes de que poderia entrar com mandato de segurança contra a decisão de Genro de conceder asilo a Battisti.
Como é bem sabido (e foi lembrado recentemente pela defesa de Battisti), o mandato de segurança pode ser exercido por pessoas físicas e jurídicas dentro do país, ou por pessoas físicas e jurídicas de direito privado fora dele, mas não por governos estrangeiros. De acordo com isto, a acolhida do mandato de segurança foi ilegal. Deve ter sido esse aspecto o que motivou tamanho mistério.
Aliás, Itália pediu e obteve o privilégio de não ser apenas litigante, mas também parte da acusação: uma espécie de Ministério Público de Ultramar. Um fato insólito que, até onde eu pude pesquisar em processos internacionais, não possui antecedentes, é que o relator do processo, Cézar Peluso, consultou ao governo de Itália sobre todos os pedidos da defesa de Battisti, especialmente os relativos a sua liberdade. Curiosamente, o relator acatou servilmente as “decisões” da Itália, salvo uma, onde esta pedia liminarmente a anulação do refúgio de Battisti.
Um fato que surpreendeu até observadores totalmente neutrais foi a insistência das autoridades italianas em entrevistar-se com as autoridades brasileiras. Não encontrei nenhum registro do número exato de vezes, mas se podem contar mais de 20 visitas que personalidades políticas italianas fizeram a juízes e outras celebridades brasileiras para influir contra a decisão do asilo. Nunca, na história das relações internacionais em qualquer época da história, foi vista uma forma tão extrema de insolência por parte de funcionários de outro país.
A ingerência de Itália se manifestou também nas exageradas provocações contra o Brasil que até atingiram um jogo de futebol que deveria ser amistoso. Todos os países que viram desatendidas suas pretensões de extradição, incluída Colômbia, o Reino Unido e até Argentina, guardaram mesura (e, geralmente, uma discrição absoluta) em relação com a decisão brasileira. Os ministros e políticos italianos insultaram abertamente o governo brasileiro, difundiram piadas e sarcasmos, ofenderam aos seus habitantes e até fizeram veladas ameaças.
A mais forte das provocações foi pedir apóio à União Européia. Itália conseguiu, depois de várias recusas, que o Parlamento Europeu assinasse um documento contra o asilo de Battisti em 5 de fevereiro de 2009, que foi votado por parlamentares de ultradireita, sendo quase todos eles italianos. O total dos votos a favor foi 46 contra 8 em conta. A diferença parece dramática. No entanto, a maior parte da mídia esqueceu ressaltar um fato muito conhecido e notório:
O Parlamento Europeu tinha, no momento da votação, 751 parlamentares.
Menos de 8% dos parlamentares se prestou à bizarra cerimônia!
Violações dos Direitos Humanos
O judiciário brasileiro violou no caso Battisti todas as garantias judiciais estabelecidas na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH). www.cidh.oas.org/Basicos/Basicos2.htm
A CADH reitera o antigo direito de que toda pessoa deve ser considerada inocente, até que sua culpabilidade seja provada. Entretanto, em declarações feitas à mídia, membros do STF fizeram insistente alarde de que o destino de Battisti seria a extradição. Um dos argumentos foi que a jurisprudência seria modificada com essa finalidade.
Várias vezes, em diversos países, certa jurisprudência tem sido alterada porque era considerada ultrapassada, porque parecia pouco consistente, ou porque novos critérios entenderam que as sentenças que a formavam eram inadequadas. É claro que a jurisprudência, sendo uma forma de critério de autoridade, é totalmente subjetiva e impede qualquer progresso social. Mas, já que no mundo jurídico esse critério é aceito, o mínimo que pode pedir-se é certa racionalidade na sua modificação.
No caso do Brasil, a jurisprudência sobre direito de asilo, refúgio e extradição para ações políticas tem sido, salvo em dois casos (Olga Benário e Mario Firmenich), favorável ao acolhimento do perseguido. Se houvesse causas fundadas, ela poderia ser alterada através de um processo demorado que exigiria grande consenso e fundamentação. Como se trata da tradição jurídica mais importante do Brasil, sua rejeição só poderia justificar-se com base numa mudança radical da sociedade brasileira. É insano pensar que a aparição de apenas uma pessoa pode produzir essa mudança!
Mas, em 02/2009, o ministro do STF, Celso de Melo admitiu publicamente a existência de um “truque” (obviamente, ele não o chamou assim) para condenar a Battisti, mudando a jurisprudência “de medida” para o caso Battisti. Veja um dos muitos sites que reproduzem esta notícia:
www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/02/04/materia.2009-02-04.8748585577/view
Este infame comentário, enfeitado com algumas divagações filosóficas, é uma amostra muito clara de que Battisti está sendo tratado previamente como culpado. Isso não significa que os ministros acreditem (intimamente) que ele é culpado. Mas, significa que a maneira de criar animosidade contra seu refúgio é referir-se a ele como culpável por antecipado.
Como veremos depois, a mesma atitude foi adotada pelo Presidente do STF, Gilmar Mendes, ao advertir que o Governo deveria acatar a ordem de extradição, caso o STF se declarasse a favor dela. Isto foi uma maneira implícita de ameaçar que o Tribunal estaria contra o refúgio de Battisti.
Outra cláusula da CADH violada pelo TSF no caso Battisti é a exigência de que toda pessoa possa apresentar petições respeitosas que devem ser respondidas pelas autoridades. Battisti pediu durante muito tempo o direito a ser escutado pelo Tribunal. Inclusive, o prestigio senador Eduardo Suplicy, famoso por sua gentileza e generosidade, se dirigiu no dia 11 de fevereiro ao STF informando de que o réu tinha redigido uma declaração que gostaria fosse lida pelos magistrados. Entretanto, essa petição (que não poderia ter sido mais respeitosa) não teve resposta.
Ainda mais grave é a violação de um princípio da CADH que afirma que todo preso tem direito à verificação da legalidade de sua prisão, e a ser julgado sem demora ou, então, a ser liberado. A justiça brasileira não se incomodou com verificar a legalidade da prisão de Battisti. De fato, ele estava detido sem acusação concreta nenhuma, no melhor estilo das detenções especiais da época da ditadura. Obviamente, não pode aduzir-se a periculosidade do réu, já que em 28 anos de exílio, todas as testemunhas de sua vida, e não apenas os amigos, coincidiram em sua total adaptação as leis dos lugares que habitava.
Quando Battisti seja julgado, terá havido uma demora de “apenas” 30 meses.
Inclusive o Procurador Geral da República, que sofreu várias oscilações na apreciação do caso Battisti, foi bastante consistente ao propor o arquivamento do pedido de extradição, e considerar que a atitude do ministro Genro tinha sido juridicamente correta. Ou seja, a prisão de Battisti, além de uma gentileza ao sadismo dos fascistas itálicos, é um ato injustificado que viola claramente a CADH.
www.comunitaitaliana.com/site/index.php?option=com_content&task=view&id=8226&Itemid=94
Em 13 de março de 2009, os advogados de Battisti apresentaram seu quinto (5º) pedido de liberdade para o refugiado, se baseando agora no fato de que o processo está prescrito, pois já se passaram 20 anos desde a data em que ele foi condenado.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u534431.shtml
O governo italiano se manifestou contra o pedido com extrema rudeza, acusando aos advogados de má fé, de desonestidade profissional e de outras injúrias pesadas, e acabou negando que uma pena de prisão perpétua tenha prescrição. No entanto, mesmo nos casos mais iníquos, o país asilante é que deve decidir isso de acordo com suas próprias leis. Isto acontece inclusive nas sociedades com processos penais arbitrários e autoritários, como o Paquistão. Portanto, Brasil deve ter em conta que a pena máxima a que Battisti poderia ser condenado se fosse extraditado, seria de 30 anos. Nesse caso, o processo correspondente prescreve aos 20 anos.
http://extradicao.blogspot.com/2009/03/extradicao-governo-italiano-contesta.html
Um hábito do relator do caso Battisti é contrário a ambos, aos direitos humanos do preso e à autonomia do Estado Brasileiro. É a sua subserviência superlativa e sua cumplicidade com os acusadores. Não é exagerado dizer que, excluindo países onde o direito é absolutamente arbitrário (como as teocracias islâmicas, por exemplo), é difícil encontrar um caso comparável. Pode pensar-se que o governo italiano está julgando Battisti usando os magistrados brasileiros como simples procuradores.
Interferência Arbitrária
Existe abundante jurisprudência, em diversos aspectos (não apenas de refúgio) de que os tribunais não podem interferir em decisões técnicas ou políticas do poder executivo. No caso do refúgio/asilo, o STF seria competente para analisar a correção jurídica do processo, e não para discutir seu mérito.
Suponhamos que ao conceder o refúgio, o Ministro tivesse esquecido-se de comprovar a identidade do refugiado, e em lugar de dar refúgio a Battisti, o tivesse dado a Bin Laden. Nesse caso, o STF podia anular o processo por um vício de forma. Fora de controlar a maneira jurídica em que foi processado o pedido de refúgio/asilo, não cabe ao STF nenhuma função.
A intromissão do STF no mérito desta decisão, mostra que pretende não apenas cumprir sua função legítima de interpretar a lei, mas também modificar e até criar leis. Esta decisão aberrante foi reconhecida, porém, por um dos ministros do STF.
A invasão do STF sobre o governo foi declarada sem nenhuma inibição pelo presidente do tribunal. Gilmar Mendes ameaçou ao presidente Lula, durante uma conferência de imprensa, sobre a suposta obrigação deste de obedecer o que o STF decida sobre a extradição de Battisti. É provável que mesmo no pernóstico clima das excelências esta aberração não tenha sido muito popular, porque Mendes não voltou a insistir no assunto.
www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/03/24/materia.2009-03-24.8979725370/view
Atitude do MRE
Como já foi dito, o voto do Ministério de Relações no CONARE foi contrário à concessão de asilo. Segundo uma jornalista normalmente bem informada (clicar link abaixo), a representante de Itamaraty na Comissão, Gilda Santos Neves, se teria manifestado a favor da extradição obedecendo às pressões da Itália.
www.fab.mil.br/portal/capa/index.php?datan=15/01/2009&page=mostra_notimpol
O fato não é surpreendente, e mostra até que ponto a tradição espontânea de refúgio ou asilo, que Brasil cultivou sempre como uma forma de solidariedade internacional, está burocratizada com base em interesses de diverso tipo, especialmente econômicos.
Paradoxalmente, o ministro Celso Amorim (uma pessoa inteligente, que se considera influída na juventude por Jean-Paul Sartre) não foi nada diplomático. Interrogado por jornalistas, qualificou de “absurda” a decisão de Genro, embora, numa sequencia de contradições, também reconheceu que não gostava que Itamaraty se manifestasse contra o asilo.
A posição de Itamaraty reforça a evidência de que o refúgio político, introduzido no Brasil sob uma vocação humanitária, está sendo desviado por interesses corporativos e elitistas. Entre os mais destacados está a barganha econômica pelos subsídios, a propaganda nacionalista, a incansável luta pelo assento permanente no Conselho de Segurança, e o sonho da ex-futura grande potência do ano 2000, como dizia o governo militar.
Anistia Internacional e outras organizações têm manifestado sua decepção pelo fato de que o governo em seu conjunto e Itamaraty em particular não mostrem nenhum apreço pelos direitos humanos, apesar de que alguns líderes brasileiros atuais foram seus defensores em outra época, e sofreram pela falta deles. Brasil votou várias vezes contra a condena a China, talvez o maior violador de DH do planeta, mas se manteve neutral no caso de Cuba, apesar de que este país exerce alguma violação de DH que está por baixo da média da região, sendo muito menor que na América Central, salvo Costa Rica. As razões que guiam essa diferente conduta são estritamente econômicas. De maneira análoga, a pretensão do governo de ser reconhecido como líder dos “emergentes” o induziu a criar laços fraternos com tiranias aberrantes como Sudão e algumas teocracias islâmicas.
É claro que se o refúgio/asilo tem motivações humanitárias, a diplomacia só pode intervir nos casos em que o asilado precisa ser protegido por uma embaixada. No caso de asilo territorial, o problema deveria ser de absoluta incumbência do Ministério de Justiça. A presença do MRE no CONARE é dispensável.
Alarma Geral
A invasão do STF no problema do asilo produziu alarma em vários organismos dedicados aos DH. A primeira alarma foi disparada pelo próprio CONARE que reparou no perigo que significa que uma instituição básica da civilização, como o direito de asilo, esteja em mãos de um conclave de figuras com poder ilimitado.
O presidente do CONARE, Luiz Paulo Barreto, teme que o Ministério de Justiça seja deslocado pelo STF como última instância de decisão. Segundo ele, o Tribunal não teria capacidade de avaliar quando existe perseguição e quem merece refúgio, já que isso implica conhecer aspectos políticos, étnicos, sociais, culturais e geográficos. Os juízes são alheios a este tipo de problemas, pois a função do judiciário é a de avaliar as questões formais de direito.
Obviamente, o funcionário não podia falar muito mais, mas outro perigo que muitas pessoas percebem é que o judiciário, famoso por seu ranço classista, racista, católico, xenófobo e homófobo, não seria precisamente o lugar ideal para decidir pelo refúgio de africanos pobres e islâmicos, perseguidos por ser gays.
O ACNUR também reagiu. Num documento encaminhado ao STF, o representante Javier Lopez-Cifuentes manifestou sua preocupação pela possibilidade de que os governos que não conseguem extraditar suas futuras vítimas entrem com mandatos na justiça. Embora ele não podia ser tão explícito, sem dúvida se alarmou ao pensar que um direito humanitário se transformaria numa briga de bacharéis, sujeita a intrigas, interesses, trocas de favores, e outras mazelas que afetam o judiciário da maioria dos países.
O documento adverte que a intromissão do STF pode fazer com que processos já fechados sejam abertos, tornando interminável a perseguição de refugiados. A situação atual poderia criar um precedente para a eliminação do refúgio/asilo, o que, sem dúvida, é um objetivo presente em todos os que se opõem ao asilo dado a Battisti, quaisquer que sejam suas razões para tal oposição.
Com efeito, se o STF aprovasse a extradição de Battisti, e o governo não tivesse coragem de desobedecer, terá sido totalmente deturpado o princípio básico da Convenção de Genebra de que, sob nenhum circunstância, refugiados/asilados podem ser objetos de extradição.
A abolição do refúgio/asilo implica fazer a humanidade retroceder até antes do Renascimento, ou talvez mais.
www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090502/not_imp364218,0.php
5. Tradição Latino-Americana
Primeiros Casos de Refúgio
A definição jurídica de refugiado é um produto da Segunda Guerra Mundial, quando, face aos milhões de pessoas desaparecidas e outros milhões sob risco de extermínio, as Nações Unidas aprovaram a Convenção de Genebra de 1951, que daria status preciso aos necessitados de proteção.
Essa Convenção se referia apenas às vítimas européias da Segunda Guerra, e deveu ser complementada pelo Protocolo de 1967, que estendia a qualquer nacionalidade e época a proteção devida a vítimas de guerras, genocídios e outras catástrofes sociais.
Os países da América Latina e o Caribe aprovaram em 1984 a Declaração de Cartagena, que estende ainda a condição de refugiado a sua forma mais ampla, incluindo todos os que se sentem afetados, em qualquer lugar e época, por qualquer violação aos DH.
O Brasil, em 1960, foi o primeiro país da região que ratificou a Convenção de 1951, e primeiro a sancionar uma Lei Nacional de Refúgio, em 1997 e, em 1998, criou o CONARE. Junto com a Venezuela, o Brasil foi um dos primeiros integrantes do Comitê Executivo do ACNUR, que é composto pelos países que têm demonstrado o maior grau de compromisso com a temática dos refugiados. Esta tradição em favor do refúgio por parte do Brasil é coerente com a tradição pré-jurídica do país como um grande receptor de pessoas perseguidas ou marginadas em outras regiões do planeta. Esta hospitalidade, por sua vez, foi conseqüência de uma mistura de variáveis: o espírito internacionalista da República, a influência precoce de uma esquerda vinda da Europa, e os traços culturais de tolerância dados pela miscigenação.
Observe que este tesouro de tradições humanamente preciosas pode ser perdido pela ação revanchista de oportunistas, neofascistas e bajuladores.
Instituição de Asilo
O refúgio político e o asilo são apresentados às vezes como formas de proteção antagônicas, que não podem aplicar-se no mesmo caso. Esta visão do problema está orientada por interesses políticos, já que alguns governos não cumprem seus compromissos internacionais de refúgio e, por outro lado, reservam o asilo para perseguidos célebres. Este foi o caso de Garcia Márquez, que recebeu asilo no México, argumentando ser perseguido na Colômbia.
Em realidade, uma massa enorme de pessoas que são perseguidos globalmente por razões políticas, raciais, religiosas ou nacionais, pode conter muitas pessoas que precisem do asilo individualmente. Portanto, ambos os conceitos, apesar de suas diferentes metodologias, podem ter a mesma utilidade e serem aplicados da mesma maneira.
O asilo, na época moderna, é muito característico da América Latina, por causa dos numerosos golpes de estado, massacres produzidas por militares, guerras civis e outros problemas que na Europa foram parcialmente resolvidos. Assim, a figura do asilo encontra sua forma jurídica no Tratado Penal Internacional, celebrado em Montevidéu em 1889.
As principais convenções sobre asilo que complementam este tratado nas Américas são as seguintes:
 Convenção sobre Asilo, 4ª Conferência Panamericana (Havana, 1928)
 Convenção sobre Asilo Político, 7ª. Conferência Internacional Americana (Montevidéu, 1933)
 Tratado sobre Asilo e Refúgio Político (Montevidéu, 1939)
 Convenção sobre Asilo Diplomático, 10ª Conferência Interamericana (Caracas, 1954).
O asilo diplomático, assim, é instituto característico da América Latina. É certo, contudo, que outros países praticam o asilo diplomático esporadicamente, não o reconhecendo, todavia, como instituto de Direito Internacional.
O asilo é um ato individual concedido de maneira personalizada por uma autoridade diplomática ou executiva, a uma pessoa qualificada como perseguida. O asilo diplomático é decidido pelo embaixador do país asilante no país de origem do refugiado, e o asilo territorial é decidido por um ministério competente (usualmente, justiça, interior, governo, etc.), quando já o candidato está dentro do território no qual deseja proteger-se.
O asilo é uma instituição que, por causa desse caráter pessoal, se torna muito ostensiva, e costuma a criar conflitos entre o governo asilante e o governo perseguidor. Por esse motivo, o asilo tem sido cada vez mais restrito a pessoas com alguma função que indica claramente o estado de perigo. Por exemplo, políticos, magistrados, jornalistas, sindicalistas, geralmente, porém não necessariamente, com alguma notoriedade.
Então, na América Latina, muitas vezes os governos utilizam a fórmula de refúgio, porém aplicada caso por caso, o que permite que a recepção de perseguidos seja menos espetacular e gere menos tensão com o país perseguidor.
Isto completa a explicação de por que refúgio e asilo podem ser confundidos, e por que a acusação contra Tarso Genro de ter cometido uma infração ao outorgar asilo “disfarçado” de refúgio, é produto da ignorância história e sociológica daqueles bacharéis que só sabem decorar frases em juridiquês e latim macarrônico.
6. A Tradição Brasileira
Extradições Não Políticas
Um caso interessante, não político, de extradição negada, foi a do assaltante britânico Ronald Biggs, que se escondeu no Brasil depois de uma longa fuga por diversos lugares do planeta.
Em 1974, um jornalista britânico descobriu a presença de Biggs no Rio de Janeiro, e comunicou o fato a Scotland Yard. Apesar das gestões do governo britânico junto à ditadura brasileira, Biggs não pôde ser extraditado, porque sua parceira estava grávida. Este fato não tem relação com refúgio, mas mostra que alguns princípios (por exemplo, o de que o pai de um brasileiro não pode ser expulso) fazem parte de uma tradição tão forte, que nem os próprios militares, inclusive ante um crime comum, tiveram ânimo de violá-los.
É interessante observar que a proteção ao autor de um crime comum não aberrante, praticado por um cidadão de um país onde não existe trato desumano com os detentos, é uma atitude fortemente principista. Vejamos que aconteceria no outro extremo:
Si Battisti fosse extraditado, um homem cujos crimes não foram comprovados, e que, além disso, são de caráter político, seria enviado a uma câmara de tortura, no auge de um sistema considerado “democrático”.
Extradições Concedidas
Há poucos casos de extradições que prejudicaram autores de crimes estritamente políticos.
O único caso recente é o do argentino Mário Eduardo Firmenich. Este foi um dos fundadores e principal chefe da organização social armada Montoneros, um grupo especializado em guerrilha urbana, cujo objetivo nos anos 60 era derrubar a ditadura militar da época, e favorecer o retorno de Perón, tarefa na qual teve importante participação.
Depois das eleições argentinas de 1983, quando a mais recente das ditaduras abandonou o poder, o novo governo democrático decidiu acalmar a possível ira dos militares, e passou a perseguir antigos chefes de movimentos guerrilheiros. É importante ter em conta que estes movimentos, salvo o chamado Exército Revolucionário do Povo, não eram marxistas, mas grupos nacionalistas católicos cujo apelo ao socialismo era bastante difuso.
O governo argentino pediu a extradição de Firmenich à já agonizante ditadura de Figueiredo, e o réu foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 24/10/1984. Este foi o único caso de extradição de um refugiado por razões políticas nos tempos modernos. Entretanto, embora movido por interesses políticos de ambos os governos, essa extradição não foi totalmente iníqua. Segue um resumo da ementa do Acórdão do STF em que aparece esse processo. Os grifos são meus.
Extradição. Crimes políticos.
Decisão sobre os mesmos crimes em outro processo de extradição, o de Mario Eduardo Firmenich, do Movimento Peronista Motonero.
No processo de extradição de Mario Eduardo Firmenich, foram considerados crimes de natureza política os que lhe foram imputados de deposito de explosivos e posse de arma de guerra, pelo que sua extradição veio a ser concedida por outros crimes, mas não por aqueles.
Em conseqüência, de conceder-se 'habeas corpus' a paciente, Maria Elpidia Martinez Aguero, para que seja trancado qualquer expediente relativo a sua extradição e que tenha por base a acusação de cometimento daqueles mesmos crimes de deposito de explosivos e de posse de armas de guerra, que por ela teriam sido cometidos juntamente com o aludido Mario Eduardo Firmenich.
Deve observar-se que posse de armas de guerra e explosivos foram considerados crimes políticos pelo STF e, portanto, não causadores do processo de extradição. Uma amostra disso é que a companheira de Firmenich, que tinha cometido os mesmos delitos, não foi extraditada, e pôde conservar sua condição de refugiada.
O caso de Firmenich foi infinitamente mais grave que o de Battisti e não pode servir de argumento para a extradição deste. Com efeito, desde 1970 em diante, os atos de violência cometidos pelo grupo de Firmenich foram abertamente propagandeados por ele próprio e pelas pessoas sob seu comando. A revista El Descamisado (O Descamisado), órgão dos Montoneros, descreveu em um de seus números, a execução de um militar reformado que tinha sido ditador nos anos 1955-1958. Eles se atribuem essa execução sem nenhum atenuante, a consideram justa, e se gabam do método empregado para fazê-la, que não deixou ao executado nenhuma chance de defesa.
Também, Firmenich se orgulhou de diversos sequestros e de atentados a bomba onde morreram civis, ou então militares e policiais que não estavam a serviço naquele momento, nem podiam ser qualificados, massivamente, de torturadores. Mesmo assim, a extradição de Firmenich pode ter sido produto de pressões dos governos de ambos países, e talvez não teria acontecido em outra época.

Asilados Políticos Italianos
Durante a década de 90, Brasil recebeu como refugiados/asilados, alguns ex-ativistas italianos que fugiram de seu país depois da derrota da organização Brigadas Vermelhas, na qual tinham militado durante os anos 70. Há quatro casos famosos, nos quais o governo italiano exigiu a extradição, mas, também em todos os casos, o STF a negou, se baseando no fato de que os asilados eram acusados de crimes políticos. O caso era similar ao de Battisti no que se refere à existência de condenas, embora, por causa da situação política internacional (diferente da atual), o governo italiano não promoveu um escândalo das mesmas dimensões que no de Battisti.
Estes ativistas eram Luciano Pessina, Achille Lollo, Pietro Mancini e Pasquale Valitutti. Veja neste site uma referência a esses casos contada pelo primeiro advogado de Battisti.
www.jusbrasil.com.br/noticias/929889/o-grampo-telefonico-e-a-tortura-dos-nossos-dias
Pessina foi julgado no dia 13/02/1997, junto ao Tribunal Pleno do STF. Segue uma síntese da Ementa, na qual temos conservado os aspectos principais:
(Fonte: Jurisprudência do STF)
1. O extraditando foi condenado pela Justiça Italiana, em julgamentos distintos, a três penas de reclusão [...]
2. Quanto à primeira, ocorreu a [...] prescrição da pretensão executória da pena, seja pela lei brasileira, seja pela italiana. [...]
4. Mas, já na primeira condenação, atingida pela prescrição, ficara evidenciado o caráter político dos delitos, consistentes em explosões realizadas na via pública, para assustar adversários políticos. [Foram] nas proximidades das sedes de suas entidades, sem danos pessoais, porque realizadas de madrugada, em local desabitado e não freqüentado, na ocasião, por qualquer pessoa, fatos ocorridos em 1974.
5. A segunda condenação imposta ao extraditando foi, também, por crime político, consistente em participação simples em bando armado, de roubo de armas contra empresa que as comercializava, de roubo de armas e de dinheiro, contra entidade bancária, fatos ocorridos em 12.10.1978. Tudo, "com o fim de subverter violentamente a ordem econômica e social do Estado italiano, de promover uma insurreição armada e suscitar a guerra civil no território do estado, de atentar contra a vida e a incolumidade de pessoas para fins de terrorismo e de subversão da ordem democrática".
Essa condenação não contém indicação de fatos concretos de participação do extraditando em atos de terrorismo ou de atentado contra a vida ou à incolumidade física das pessoas. [Grifo meu]
E o texto é omisso quanto às condutas que justificaram a condenação dos de mais agentes, de sorte que não se pode aferir quais foram os fatos globalmente considerados. E não há dúvida de que se tratava de insubmissão à ordem econômica e social do Estado italiano, por razões políticas, inspiradas na militância do paciente e de seu grupo. Trata-se pois, também, nesse caso, de crime político, hipótese em que a concessão da extradição está expressamente afastada pelo inciso LII do art. 5º da Constituição Federal [...]
13. Extradição indeferida. Plenário. Decisão unânime.
Mesmo nesta síntese pode apreciar-se que a informação apreciada pelo STF foi bastante ampla, e os fatos ressaltados parecem ter sido de conhecimento público, e não apenas como confissões fornecidas por mercenários ou sob tortura, como no caso Battisti.
Dos outros dois casos, é também interessante o de Pietro Mancini, julgado no dia 14/12/2005, onde a frase mais significativa é a seguinte:
Uma vez constatado o entrelaçamento de crimes de natureza política e comum, impõe indeferir a extradição. Precedentes: Extradições 493-0 e 694-1, relatadas pelos ministros Sepúlveda Pertence e Sydney Sanches, respectivamente.
Decorre deste julgamento que um crime comum cometido durante um processo onde o crime predominante é político (por exemplo, um incêndio como parte de uma ação defensiva) é “contaminado” por este, tornando ao réu em imediato delinqüente político e, portanto, não extraditável.
Os Refugiados do Cone Sul
A partir de 1973, os países do Cone Sul foram afetados pelas ditaduras mais sangrentas da história da região, todas as quais tão ou mais truculentas que a própria ditadura brasileira.
A partir de 1976, o setor ACNUR correspondente ao Cone Sul, cujos escritórios funcionavam em Buenos Aires, deveu abandonar o país por causa dos ataques violentíssimos da ditadura, com assassinato de refugiados e funcionários.
Para facilitar sua tarefa, a Cúria Metropolitana de São Paulo e a do Rio, por inspiração dos bispos Evaristo Arns e Eugênio Salles, decidiram acolher ao ACNUR no Brasil. Em São Paulo, este funcionou no edifício do bairro de Higienópolis, anexo á organização de Justiça e Paz, dirigida na época por Margarida Genevois.
O apóio que a Igreja deu aos refugiados está na linha de proteção aos DH que caracterizou à Igreja Brasileira, e de sua oposição á ditadura, e não guarda qualquer relação com a política internacional da Igreja Católica, que era amplamente favorável às ditaduras, especialmente as mais católicas como a Argentina e a Chilena.
Durante esse período, o estado brasileiro se absteve a dar refúgio ou asilo aos perseguidos de outros países, pretextando, entre outros argumentos, que o país não tinha assinado o Protocolo que ratificava a Convenção de Genebra sobre refúgio.
Entretanto, é necessário observar que, tendo o Brasil uma ditadura cuja violência era criticada em todo Ocidente, a atitude dos poderes públicos de permitir a entrada e trânsito de perseguidos políticos do Cone Sul já merece certa reflexão. Pessoalmente, por estar ativamente envolvido em ações para-oficiais de defesa de refugiados, e ter um contato permanente com ACNUR e Justiça e Paz, não me lembro de nenhum caso específico em que as autoridades brasileiras tenham extraditado um refugiado. Isto não pretende negar que a polícia e organismos para-militares cometeram vários sequestros de refugiados em colaboração com as ditaduras vizinhas.
Contudo, desde o ponto de vista oficial, a ditadura de Geisel não manifestou séria oposição à passagem de futuros refugiados pelo território brasileiro. Estes foram, em sua maioria, encaminhados a países desenvolvidos, como Canadá, e os países protestantes de Europa Ocidental. Algumas pessoas também conseguiram residência convencional, e outros aguardaram as anistias do governo Figueiredo, a partir das quais foram legalizados.
Estas observações visam destacar a enorme força da hospitalidade popular brasileira, a tal ponto que, mesmo uma ditadura violenta, que via naqueles refugiados seus piores inimigos em versões estrangeiras, não ousou lançar nenhuma campanha contra eles.
Asilo: O Caso Falco
Em fevereiro de 1989, o jovem argentino Fernando Carlos Falco, membro do movimento de esquerda não violenta, denominado Todos pela Pátria, fugiu ao Brasil depois de ter caído numa cilada montada pelo Exército Argentino no quartel de um poderoso regimento localizado na cidade de La Tablada, perto de Buenos Aires. O objetivo era atrair os membros do movimento, com o boato de que em esse quartel se gestava um golpe de estado, sabendo que os jovens, que estavam engajados em ações muito decididas em defesa da democracia, se dirigiam ao local para evitar a revolta militar. Depois de que o grupos de jovens chegou ao quartel, os militares abriram as portas, e receberam os ativistas com fogo de armas pesadas, granadas e bombas incendiárias, matando várias dúzias.
Uns 40 militantes foram torturados e mortos, outros foram capturados, mas Falco e uns poucos colegas conseguiram escapar. No Brasil, o jovem foi seqüestrado por um comando conjunto das polícias federais argentina e brasileira, mas a PF brasileira deveu entregá-lo à justiça. Naquele momento, o governo democrático argentino (presidido por Raúl Alfonsín, tido na América Latina como um dos líderes da democracia do continente) tentou mantê-lo seqüestrado, mas não conseguiu e apresentou um pedido de extradição ao governo brasileiro. Por razões que desconheço, seu caso não mereceu muita difusão, apesar de ser o mais parecido ao de Battisti. Ele foi julgado pelo tribunal pleno no dia 04/10/1989.
A seguinte é uma transcrição do acórdão do STF. Todos os trechos em destaque foram grifados por mim mesmo, e mostram a tendência do Tribunal que caracteriza sua visão dos crimes políticos como diferentes do terrorismo.
1. Pedido de extradição: dele se conhece, embora formulado por carta rogatória de autoridade judicial, se as circunstancias do caso evidenciam que o assumiu o governo do estado estrangeiro.
2. ASSOCIAÇÃO ILÍCITA QUALIFICADA e a REBELIÃO AGRAVADA, como definidas no vigente código penal argentino, são crimes políticos puros.
3. (a) - Fatos enquadráveis na lei penal comum e atribuídos aos rebeldes :
Roubo de veículo utilizado na invasão do quartel, e privações de liberdade, lesões corporais, homicídios e danos materiais, perpetrados em combate aberto, no contexto da rebelião, são absorvidos, no direito brasileiro, pelo atentado violento ao regime, tipo qualificado pela ocorrência de lesões graves e de mortes (...)
(b) - A imputação de dolo eventual quanto às mortes e lesões graves não afasta necessariamente a unidade do crime por ela qualificado.
4. Ditos fatos, por outro lado, ainda quando considerados crimes diversos, estariam contaminados pela natureza política do fato principal conexo, a rebelião armada, à qual se vincularam indissoluvelmente, de modo a constituírem delitos políticos relativos.
O último parágrafo é uma peça jurídica de importância histórica, onde, pela primeira vez, um tribunal latino-americano separa violência política de terrorismo.
5 - Não constitui terrorismo o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos generalizados para a população civil.
O STF indeferiu o pedido de extradição argentino e garantiu a Falco a permanência no país. Ele ficou na condição de asilado/refugiado, o qual é mais uma prova de que ambos os conceitos não são fáceis de separar como pretendem alguns magistrados. O asilo foi concedido pelo governo, que lhe forneceu documentos e estadia legal no país, e em condição de refugiado recebeu ajuda econômica do ACNUR durante os primeiros meses. Viveu normalmente no Brasil, onde formou uma família, até 2004, quando o novo governo argentino revogou as ordens de perseguição contra ele, e o convidou a voltar.
Deve observar-se que Falco e alguns de seus companheiros foram perseguidos e ameaçados pelo governo argentino, não durante a ditadura, mas durante o governo posterior a ela (1983-1989), que era considerado um modelo de democracia latino-americana. Este é pelo menos um dos numerosos contra-exemplos possíveis contra a ridícula falácia de que “nos governos democráticos não existem abusos judiciais”.
Asilo: O Caso Medina
Oliverio Medina é um padre colombiano devotado à pastoral em defesa dos camponeses, e um grande mediador desde 1883 até 2000, nos processos de paz entre as diversas forças revolucionárias e o governo de Colômbia.
Em 2000, foi preso pela Polícia Federal brasileira, mas foi logo liberado. Por exigência da Colômbia, foi novamente capturado em 2005, num operativo sigiloso em cumplicidade com Interpol. Como de hábito, o governo colombiano o acusou de terrorismo e pediu sua extradição, que foi negada num processo memorável.
Em julho de 2006, o CONARE lhe concedeu refúgio. Este é o terceiro exemplo importante de alguém perseguido por um estado formalmente democrático, o que contradiz novamente que um perseguido por uma democracia não deveria ser asilado. Finalmente, a extradição foi indeferida pelo STF em março de 2007, uma data muito próxima. Reproduzo a Ementa do STF, onde todos os grifados e as observações entre os parágrafos são minhas e não aparecem no texto original.
Extradição: Colômbia: crimes relacionados à participação do extraditando - então sacerdote da Igreja Católica - em ação militar das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Questão de ordem. Reconhecimento do status de refugiado do extraditando, por decisão do comitê nacional para refugiados - CONARE: pertinência temática entre a motivação do deferimento do refúgio e o objeto do pedido de extradição: aplicação da Lei 9.474/97, art. 33 (Estatuto do Refugiado), cuja constitucionalidade é reconhecida: ausência de violação do princípio constitucional da separação dos poderes.
Observação:
O STF reconhece que o Estatuto do Refugiado é constitucional, que sua aplicação pelo poder Executivo não viola a separação de poderes, e que o fato de ter sido declarado refugiado impede imediatamente a extradição. Isto foi deliberado faz pouco mais de 3 anos. Entretanto, vários dos atuais ministros do STF argumentam atualmente que essas decisões não são válidas.
É evidente que existe alguma razão tortuosa, pela qual esses ministros pretendem que uma decisão tão clara e ajustada aos direitos humanos seja totalmente distorcida.
1. De acordo com o art. 33 da L. 9474/97, o reconhecimento administrativo da condição de refugiado, enquanto dure, é elisiva [ou seja, supressora] por definição, da extradição que tenha implicações com os motivos do seu deferimento.
2. É válida a lei que reserva ao Poder Executivo - a quem incumbe, por atribuição constitucional, a competência para tomar decisões que tenham reflexos no plano das relações internacionais do Estado - o poder privativo de conceder asilo ou refúgio.
Este parágrafo reconhece o direito do PE para conceder tanto refúgio como asilo, contrariando a pretensão do atual STF de que cabe a ele próprio decidir sobre esse assunto.
3. A circunstância de o prejuízo do processo advir de ato de um outro Poder - desde que compreendido na esfera de sua competência - não significa invasão da área do Poder Judiciário.
4. Pedido de extradição não conhecido, extinto o processo, sem julgamento do mérito e determinada a soltura do extraditando.
5. Caso em que de qualquer sorte, incidiria a proibição constitucional da extradição por crime político, na qual se compreende a prática de eventuais crimes contra a pessoa ou contra o patrimônio no contexto de um fato de rebelião de motivação política.
O STF considera que crimes comuns podem ser delitos conexos, quando se considera que o processo principal é de motivação política.
A “Adaptação” para Battisti
É absolutamente evidente, de todo o anterior, que há apenas três anos, o STF aceitava, de uma maneira categórica, sem qualquer condicionamento, e com o máximo de ênfase, os seguintes princípios:
1. Que a condição de refugiado impede a extradição.
2. Que a lei que atribui ao PE o direito de dar refúgio/asilo é constitucionalmente válida.
3. Que não há invasão do poder judiciário.
4. Que crimes comuns conexos com o político fazem parte do crime político.
Desde que foi concedido o refúgio a Battisti, o presidente do STF, Gilmar Mendes, o decano dos ministros, Celso de Melo, o relator, Cézar Peluso, e eventualmente alguns outros ministros, em declarações públicas, indicavam claramente a possibilidade de derrogar todos estes princípios. A forma mais brutal em que isto foi expresso foi na frase de que o “STF pode modificar sua jurisprudência”.
Observem: a jurisprudência à qual pertencem esses 4 princípios foi aplicada milhares de vezes, beneficiando a última vez uma figura muito similar à de Battisti. O que agora se propõe é que, de maneira brusca, por um ato de mágica que parece baseado em razões misteriosas vindas do além, o STF anule toda essa jurisprudência e adote outra.
Esta grosseira fraude jurídica, apresentada com tamanho cinismo, é totalmente contraditória com a tradição jurídica do Brasil, que sempre foi muito cuidadoso na modificação da jurisprudência. Aliás, uma “transfiguração” de jurisprudência a medida é algo infreqüente inclusive em países cujo sistema jurídico é extremamente primitivo, como alguns de África e até de países islâmicos.
7. Itália: Terrorismo e Repressão
O Contexto Italiano nos 70
Quando Tarso Genro concedeu refúgio/asilo a Battisti, a direita dos mais diversos níveis e atividades preparou todos seus canhões para atacar. Um dos mais sutis foi um argumento que, apesar de falso, foi aceito por uma grande maioria mal informada. É o seguinte:
Não deve dar-se refúgio a alguém que foge de um país democrático, porque nas democracias não há arbitrariedades nem violação aos Direitos Humanos.
Muitas pessoas acreditam nisto de boa fé. Os países que tiveram ditaduras viram que, ao passar para governos democráticos, voltava a liberdade de imprensa, se liberavam prisioneiros, a sociedade podia novamente escolher seus representantes.
Entretanto, os contra-exemplos abundam em nosso próprio continente e em épocas recentes. No Brasil, que é uma democracia simbólica relativamente correta, são incontáveis os abusos de poder policial, os massacres de habitantes pacíficos, as torturas aplicadas em delegacias, os homicídios de crianças e mulheres por agentes de segurança, o trabalho escravo, e muitas outras mazelas que não dependem do poder central, mas que tampouco são encaradas por este.
Já nos Estados Unidos, modelo mercadológico de democracia, os escândalos por abusos das tropas invasoras em Iraque e outros países tem ocupado as manchetes durante meses. Um exemplo pouco lembrado, porém dramático, foi o governo de Perón e sua esposa, na Argentina, entre 1973 e 1975. Este governo, que pavimentou o caminho dos crimes da ditadura de 1976, não foi apenas democrático mas também popular. Nas eleições de setembro de 1973 receberam uma proporção de votos (quase 70%) que nunca tinha sido vista no Continente. Entretanto, durante 1974 e 1975, esse governo produziu mais de 2000 sequestros com desaparição, centenas de assassinatos de opositores, e aplicação massiva de tortura a tal ponto que várias linhas de tensão estouraram pelo excessivo uso das máquinas de choque.
Depois da Guerra, Itália tentou consolidar uma democracia na qual pudesse conviver a direita (democracia cristã e neo-fascistas) com a esquerda (comunistas, socialistas e “ultras”.) Isso parecia ser possível. Entretanto, o Partido Comunista tinha saído muito prestigiado por sua luta contra o fascismo, e ameacava obter a maioria no Parlamento. A direita não podia suprimi-lo, como aconteceu na Alemanha, porque o PCI tinha muitos militantes e grande influência, e uma repressão aberta contra ele poderia acender uma guerra civil no coração da Europa.
A CIA, junto com os serviços de inteligência específicos da OTAN, ajudados por numerosos fascistas que permaneciam em postos importantes da polícia e, algo menos, nas forças armadas, decidiram desgastar a esquerda por meio de uma Estratégia de Tensão.
Este termo se aplicou a várias estratégias usadas na Europa, das quas, as mais produtiva e violenta foi empregada na Itália. Uma estratégia de tensão é um sistema de ações destinados a criar tensão na sociedade, por meio de atos terroristas que criam insegurança nos cidadãos, que acabam atribuindo sua autoria a esquerda. Por causa disso, esses setores da opinião pública apoiam medidas repressivas cada vez maiores, fazendo que a direita americana e européia possam atacar os comunistas e seus aliados sem tê-los que enfrentar diretamente.
O cerne da Estratégia de Tensão são os ataques terrorista sob falsa bandeira. Mercenários diversos ou então verdadeiros militantes fascistas cometem atos de violência em grande escala, apresentando-se como comunistas, e deixando no cenário do ataque rastos que permitam identificá-los como membros da esquerda: cartazes com slogans, panfletos, crachás, etc.
Em quase toda Europa, salvo nos países neutrais, a estratégia de tensão utilizou, sob falsa bandeira, recursos como ataques a bombas, assassinatos, sequestros, sabotagens e chantagens. Também foi importante o estímulo para que pessoas injustiçadas se manifestassem contra o governo, de modo que o descontento se pudesse canalizar em atos que os próprios sabotadores conduziriam depois pela via do terrorismo, gerando rebeliões, incêndios e explosões. Um dos recursos típicos, que fora usado pelos fascistas espanhóis durante a guerra civil com o nome de quinta columa, consistia em organizar campanhas de boatos que confundissem à população sobre o que estava acontecendo.
O agentes de tensão eram membros da CIA, das forças armadas e das policias, especialmente treinados, junto com mercenários profissionais e veteranos de outras ações criminosas. Exemplos importantes foram: ex-terroristas cubanos que tinham atacado a ilha várias vezes, e que quase tiveram sucesso em matar Fidel Castro; ex-torturadores de Argélia; muitos terroristas de meia idade que tinham sido membros de grupos fascistas juvenis, e outros especialistas.
Estados Unidos impulsionou esta estratégia usando uma rede de operativos chamada Gládio (espada) que se aplicou em quase todos os países, mas teve relevância maior na Itália. Além do terrorismo cru, que os países mais democráticos de Europa não aceitariam, os americanos criaram em sociedades como a norueguesa ou a holandesa o temor de uma invasão soviética, o que favoreceu seu sistema de espionagem.
A rede Gládio, implantada talvez na década dos 60 ou ainda antes, não veio a público conhecimento até 1984. Nessa época, o terrorista italiano Vincenzo Vinciguerra, chefe do grupo fascista Nova Ordem, foi capturado e julgado pela morte de três policiais. Em seu descargo, o réu denunciou seus mandantes e revelou a existência da rede. Entretanto, o governo italiano guardou silêncio até 1990, quando Giulio Andreotti admitiu que existia uma estrutura de inteligência e ação, cujas características coincidiam com a Gládio denunciada por Vinciguerra.
O operativo Gládio foi, segundo parece, o autor dos primeiros atentados ao serviço da estratégia de tensão, acontecidos na Itália. O procedimento era cometer atos terroristas com grande quantidade de vítimas inocentes, para indignar à população que acabava acreditando na falsa bandeira comunista. Alguns desses ataques foram especialmente sangrentos.
 Banco Nacional de Agricultura. Milão, 12/12/1969. Ataque massivo, com 16 mortos e 88 feridos. Alguns anarquistas confusos foram manipulados por forças fascistas para executar o ataque.
 Trem Roma-Munique. Bolonha, 04/08/1974. Bomba de plástico. Vítimas: 12 mortos e 44 feridos.
 Estação Central de Bolonha. 02/08/1980. Explosivo para uso militar de alto poder. Vítimas: 85 mortos, 200 feridos. Reivindicado pelo grupo neo-fascista Núcleos Armados Revolucionários.
 Trem Rápido 904. Perto de Bolonha. 23/12/1984.


O terrorista neofascista de atuação internacional (incluindo as Américas) Stéfano Delle Chiaie foi detido por suspeita de alguns destes crimes, mas um Tribunal do Sul da Itália o declarou inocente. Vários oficiais da marinha americana e alguns espias da CIA foram requeridos para interrogatório, mas foram liberados. Um informante da CIA, um médico fascista e outro membro de um grupo terroristas foram absolvidos em 2004.
Já em 1974, Vito Miceli, chefe do Serviço de Informações, membro de uma sociedade secreta ligada ao Vaticano, e chefe do Serviço de Inteligência do Exército a partir de 1969, foi detido sob a acusação de dirigir um grupo terrorista dentro do aparato do estado.
Entretanto, os primeiros atentados da Estratégia de Tensão foram tão violentos, que os serviços americanos e da OTAN e os neofascistas tinham esperança de que eles servissem de pretexto para declarar estado de sítio e começar uma repressão espetacular. No entanto, por razões ainda não bem compreendidas, os agentes da CIA em Roma consideraram essa medida prematura, e continuaram instigando novos atos terroristas, até que se produzisse uma explosão de indignação geral que justificasse um golpe de estado.
Isto não aconteceu, mas a tensão aumentou cada vez mais, e o Partido Comunista (PCI) foi perdendo eleitorado. Na época (entre 1969 e 1975, aproximadamente) o PCI não era ainda tão diferente do que foi durante a guerra, e possuía muitos militantes esforçados, inteligentes e animados de verdadeiro espírito marxista.
Entretanto, a política de desgaste e as aproximações com a direita desiludiram aos comunistas mais honestos. Estes acabaram abandonando o partido, que ficou cada vez mais controlado por burocratas e por figuras decadentes e apenas simbólicas, como Sandro Pertini. Dentro deste panorama, centenas de militantes comunistas se passaram aos grupos de ultra-esquerda, e muitos deles aderiram finalmente à luta armada, argumentando a falta de sentido de autodefesa do PCI em relação com as agressões fascistas.
Foi nesse contexto que surgiram diferentes movimentos, com características diversas, mas unificados por uma visão marxista e antiburguesa da sociedade. Entre esses grupos estava a Autonomia, da qual surgiu o PAC de Battisti e muitos outros pequenos grupos. Paralelamente, se desenvolveram as Brigadas Vermelhas, mas concentradas na ação direta.
O Relatório de Anistia Internacional
No relatório sobre Itália de 1981, Anistia Internacional descreve alguns abusos aos Direitos Humanos que desmentem a crença sustentada por muitas pessoas de que os países ditos “democráticos” possuem sistemas jurídicos confiáveis e justos. Na Itália houve muitos motivos específicos para manter a repressão e a brutalidade, mas eles vão além desta breve análise, e se aventuram no campo de ideológico, que desejo evitar. Digo, apenas, que a sobrevivência do fascismo, a forças das máfias, e as organizações secretas ligadas à Igreja, junto com os interesses da OTAN e dos Estados Unidos, mantiveram, dentro de uma estrutura política democrática, um sistema de repressão comparável aos das ditaduras dos países subdesenvolvidos.
AI denuncia a contínua detenção, sem julgamento, de grupos de pessoas relacionadas com a Autonomia. O texto não cita expressamente o PAC, mas este foi um dos subprodutos da Autonomia. Nossa organização qualifica como “sem precedentes” um artigo novo acrescido ao código penal (art. 284) em que se condena com cadeia perpétua “a subversão armada contra o estado”, um crime definido de maneira vaga e com notório estilo ideológico.
Na época deste relatório, 69 indiciados pelos delitos da Autonomia tinham sido encaminhados para julgamento, mas, depois de 25 meses em prisão, a data desse julgamento ainda não tinha sido anunciada.
Mario Dalmaviva, um detento que se considerava comunista por ideologia, mas sem partido e definido inimigo da luta armada, começo uma greve de forme, por não ter sido julgado em 20 meses. AI reclamou uma decisão ao ministro de justiça, afirmando que as provas contra Dalmaviva não eram claras, que ele e seus colegas de prisão não tinham sido entrevistados pelo juiz, e que sua saúde corria riscos, mas não obtiveram resposta.
Relata-se também que quatro réus liberados em 1979 por falta de provas, foram novamente detidos em 1981, apesar de que o juiz afirmou que existiam provas em favor deles. AI também pediu tratamento especial para um prisioneiro gravemente doente, mas não recebeu resposta.
Na época, o governo italiano detinha Testemunhas de Jeová, uma organização cristã reformada, totalmente pacifista e radical inimiga de atos sangrentos. Seus membros foram alojados no Castelo de Gaeta, uma prisão literalmente medieval, que nunca tinha sido reformada desde o século 13, onde a saúde dos detentos corria gravíssimos riscos, de maneira permanente. Em novembro de 1980, o governo desativou essa prisão militar, embora não a fechou formalmente. Entretanto, as pessoas que tinham apresentado queixas sobre brutalidade e maus tratos em Gaeta, foram submetidos a processo por “difamar os militares” (sic).
Sergio Andreis, que se recusou a servir no exército com base em suas crenças religiosas, foi condenado a prisão, mas o presidente Pertini (um antigo comunista que fora herói da luta antifascista, e era tido como figura decorativa pelo governo italiano) lhe concedeu um indulto. Em seguida, as autoridades militares inventaram novas acusações contra Andreis, sobre suposto espionagem militar do detento. O governo e o exército mostravam assim que as “decisões” de Pertini, já em idade avançada e doente, eram levadas na brincadeira. Finalmente, Andreis, que foi protegido especialmente por AI, foi condenado a “apenas” 10 meses e meio de prisão e inabilitação por 5 anos.
Em janeiro de 1981, três prisioneiros foram acusados de ter promovido rebeliões que, no entanto, tinham sido planejadas desde fora, apesar de que não tinham provas contra eles, e que os três negaram enfaticamente ser partidários da rebelião.
AI relata que, na grande maioria dos casos de pessoas detidos por supostas conexões com ações violentas, os vínculos aduzidos pela justiça são muito tênues ou inexistentes. As novas leis produzidas entre 1980 e 1981, autorizam a deter pessoas por suspeitas de terrorismo, ou por entender que seu estilo pessoal as torna “favoráveis” ao terrorismo. Um artigo estende o período em que uma pessoa pode estar detida “preventivamente” por suspeitas ou inclinação ao terrorismo, até 10 anos e 8 meses. Não houve uma lei tão truculenta durante a ditadura militar brasileira nem durante a uruguaia.
Também, essas leis restringem o direito de reclamar à Convenção Européia sobre os Direitos Humanos. Isto só será possível depois de “esgotar” (sic) todas as possibilidades dentro da Itália. Quem define quando essas possibilidades foram esgotadas é a própria autoridade repressora.
AI descreve o caso de Giustino Cortiana, um consultor de marketing que foi acusado sem provas, mantido preso em várias prisões, e até internado num sanatório psiquiátrico. Em Novembro de 1979, Anistia reclamou atenção médica para Alberto Bounoconto, detido em condições de salubridade infra-biológicas, que tinham produzido uma grave diminuição dos sentidos, tinham alterado suas condições mentais, e lhe produziram certa forma de paralisia que lhe impedia andar ou comer sem ajuda. Anistia não recebeu nenhuma resposta dos juízes quando indagou por outros dois prisioneiros aos quais os tratos desumanos os tinham conduzido a diversos quadros psicóticos.
AI denuncia neste relatório que, desde 1978, as autoridades têm aplicado leis muito amplas, formuladas vagamente, que permitem deter a qualquer pessoa que tenham manifestado opiniões políticas subversivas.
Sem nomear os atores explicitamente, AI denuncia as torturas que foram aplicadas a 9 pessoas detidas em relação com o homicídio de um joalheiro em Milão. Pela data da denúncia (abril de 1979), só pode referir-se ao joalheiro Torregiani, de cuja morte Itália acusa a Battisti, como vimos nas seções anteriores. Ao mesmo tempo, os investigadores de AI receberam na época denúncias de maus tratos nas prisões e especialmente nas delegacias, consistentes em pancadas, posições dolorosas, afogamento, chicotadas, chutes e queimaduras leves.
Denuncia-se também que já em 1979, novas leis garantem poder discricionário à polícia. Pessoas detidas durante uma blitz pode ser mantidas presas e interrogadas, sem a presença de advogados. Pouco depois, o estado italiano criou 8 prisões de segurança máxima, onde se aplicavam formas de isolamento que colocavam em risco a saúde dos detentos.
Giovanni Ventura, acusado de um atentado a bomba, foi preso e permaneceu nessa situação durante 4 anos sem ser julgado. Entretanto, embora os acusados de terrorismo recebessem um trato pior, as Testemunhas de Jeová e outros objetores de consciência também eram punidos com penas severas, que podiam ultrapassar um ano.
Referências
AMNESTY INTERNATIONAL: Torture in the eighties: an Amnesty International report, 1984. p. 208
AMNESTY INTERNATIONAL. International Report, Italy, 1979.
AMNESTY INTERNATIONAL. International Report, Italy, 1980.
AMNESTY INTERNATIONAL. International Report, Italy, 1981.
Estes três últimos relatórios tiveram circulação reduzida, mas posso facilitar cópias a quem estiver interessado.
carlos.lungarzo@gmail.com
Crime Político, Comum e Lesa Humanidade
Crime político não é simplesmente um “crime cometido por políticos” ou por “pessoas que se movem com interesses políticos”. Muitos crimes cometidos por políticos são crimes de lesa humanidade, como tortura, genocídio, chacinas, perseguição racial, etc. Nestes casos, que a motivação seja política não é relevante, porque o peso de crueldade vinculada a estes crimes ultrapassa qualquer justificação política. Alguém teria coragem de dizer, atualmente, que Adolf Hitler deveria ter pedido refúgio por crime político, em vez de suicidar-se?
É com base nessa distinção que os crimes dos nazistas não foram protegidos como crimes políticos. Tampouco o foram os crimes dos militares gregos julgados a partir de julho de 1975, acusados de golpe de estado e de delitos contra a humanidade decorrentes destes. Neste caso, houve várias condenas a prisão perpétua, a 20 anos de prisão, e até de morte, que foram depois comutadas.
Observação:
A tolerância com os crimes das ditaduras Latino-Americanas não significa que eles fossem “delitos políticos”. Essa tolerância não tem origem jurídica, mas se baseia no medo que os políticos têm dos militares e sua cumplicidade com estes, como acontece atualmente na negativa do governo brasileiro de excluir os agentes da ditadura das leis de Anistia. Uma prova de que este procedimento é perverso e injustificado é que o “esquecimento” dos crimes dos militares nas Américas tem sido fortemente criticado por juristas e organismos internacionais do mais alto prestígio.
Já o crime político é aquele que viola determinadas leis, colocando a seus autores na condição de delinqüentes, mas que não violam direitos naturais e humanos. O que é “crime político” para o sistema vigente é o que, ao longo da história foi chamado direito de rebelião, ou direito à própria ideologia. Diferencia-se com o crime comum (roubo, assalto, assassinato por vingança, etc.) em que não persegue nenhum proveito pessoal, mas a realização de um projeto social e político no qual seus executores acreditam. O delito político nem sempre é pacífico. Nesse caso se chama “delito de opinião política”. Pode sim ser violento, mas sempre evita produzir danos desnecessários, e deve inibir-se totalmente de atingir um alvo inocente, alguém que não esteja envolvido em repressão. A execução individual de um torturador é um crime político, caso essa seja uma maneira de neutralizá-lo. A colocação de uma bomba num prédio para atingir (entre outras vítimas, que são inocentes) esse torturador, é um crime de terrorismo e, portanto, contra a humanidade.
Nesse sentido, um fascista que não tenha cometido crimes contra os DH, pode também ser considerado delinqüente político. É injusta e mal-intencionada a afirmação de que o crime político é uma figura inventada para defender exclusivamente os militantes de esquerda.
No caso de Battisti, os delitos que se lhe atribuem e que foram realmente provados são todos de caráter político. Isto é reconhecido inclusive na sentença contra Battisti de 1988. Veja o site:
www.vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1988.pdf
Na página 4, o Tribunal acusa a todos os indiciados de “subverter violentamente o ordenamento econômico e social do Estado Italiano, de promover a insurreição armada...” (linha 4 em diante), que são típicos delitos políticos. É verdade que não são delitos de opinião política, senão delitos violentos, mas nem por isso deixam de ser delitos políticos.
Desde o começo da sentença até a página 47, Battisti é acusado, em concurso com outros detentos, de intimidação, porte de armas, apropriação ilegal de bens alheios, e do que no Brasil seria “formação de quadrilha” [numero delle persone, superiore a cinque].
Alguns destes delitos podem ser considerados comuns, mas a lei italiana não pune nenhum deles com prisão perpétua. Além disso, roubo, intimidação e outros podem ser considerados conexos com crimes políticos. Isto foi o entendimento do STF brasileiro no caso Falco como foi visto na seção 6.
Terrorismo e Violência
A posição do STF sobre terrorismo está expressa com absoluta claridade e ênfase na ementa do acórdão sobre o caso Falco, mencionado acima.
Os atos de terrorismo são aqueles que tentam induzir ações ou omissões de governos, por meio da imposição de terror indiscriminado sobre amplos setores da população, e produzem vítimas inocentes, mesmo que seja de maneira involuntária.
Os organismos internacionais não têm ainda uma definição oficial de terrorismo. O Conselho de Segurança das Nações Unidas propôs uma definição bastante razoável, mas foi rejeitada por governos que desejam chamar terroristas àqueles que incomodam seus projetos, e preferem que não exista uma definição oficial. Esta foi formulada num relatório do Conselho, emitido em 11/2004:
Ato Terrorista  Qualquer ato que tenda a produzir a morte ou ferir gravemente civis não combatentes, com o propósito de intimidar uma população, obrigar a um governo ou organização internacional a fazer ou deixar fazer algo.
Esta explicitação faz parte do relatório do Conselho, mas não possui valor legal. Alguns países percebem que, definindo terrorismo dessa maneira, a violência em defesa própria não poderia ser chamada terrorista, sendo então menos viável rotular assim a todos os que se defendem de invasão, genocídio ou exploração. É verdade que os grandes grupos econômicos e as grandes potências nem reparam nas decisões das Nações Unidas, mas parece que querem se poupar de futuras discussões.
O que todos entendemos por terrorismo é um processo de ataques violentos, em massa ou em série, cruéis, sem limite, com alvos indiferenciados, objetivando a geração de pânico. Para dar uma forma rigorosa a esta idéia propomos que o conceito tenha todos os atributos seguintes:
(Observe, por sinal, que um ativista político que usa técnicas violentas não pode prejudicar pessoas inocentes, mesmo sob o pretexto de que esse é um dano colateral. Um real ativista não pode incluir em seus cálculos a eventual perda de pessoas inocentes, como fazem os militares. Na América Latina, vários grupos guerrilheiros abandonaram a luta quando, de maneira imprevisível e contrariando todo cálculo, mataram alguma pessoa inocente que não fazia parte do branco. Entretanto, os exércitos profissionais, quando bombardeiam um objetivo militar, consideram que os civis mortos nas redondezas, que não pertencem a esse objetivo, são parte do dano colateral aceitável. Ou seja, os exércitos regulares são, em sua maioria, verdadeiros terroristas, salvo algumas poucas forças armadas cuja função é puramente preventiva.)


Propriedades que Definem Terrorismo
Objetivo Produzir Terror Pode ter um objetivo remoto, como derrubar um governo, mas seu objetivo imediato é gerar terror. Diferencia-se da sabotagem, que pretende criar uma dificuldade a inimigo. O terrorismo procura infundir terror em seus inimigos e nos inocentes que estão no local.
Métodos Violentos, e Massivos ou Seriais Visa apavorar aos que recebem o impacto e aos simples espectadores. Sua violência é massiva, aplicada a um grupo de pessoas (bomba numa escola), ou serial, aplicada sucessivamente a várias pessoas.
Impacto Emocional Destrutivo Aspira a que o pânico seja emocionalmente destrutivo, gerando paralisação, fuga, tumulto, e mostrando poder ilimitado.
Vítimas Inocentes atingidos Procura-se que as vítimas sejam muitas. Os inocentes são atingidos para que os sobreviventes desenvolvam e propaguem o pânico. Isso cria insegurança, porque qualquer um pode ser vítima.
Crueldade Alta A crueldade do ato terrorista é, em geral, alta. Os autores usam fogo, bombas incendiárias, explosivos de fragmentação, etc. Faz parte do objetivo de horrorizar.
Planejamento Premeditado Um atentado terrorista pertence a um plano sistemático, geralmente preparado com muita antecedência: não é produto da improvisação, e não tem o caráter imediato de um ato defensivo.
8. A Soberania Brasileira
O conceito de soberania tem sofrido restrições nos últimos tempos, por causa dos direitos humanos universais. Não pode justificar-se o uso da soberania para cometer genocídio, massacre ou tortura. Esta perversa concepção tem servido para evitar punir os policiais, militares e ditadores que cometeram crimes de guerra.
Entretanto, qualquer país deve exigir o uso de sua soberania para proteger os direitos humanos. No caso de Battisti, o refúgio ou asilo (ou, como se queira chamar) foi feito em uso legítimo da soberania brasileira. Negar isto obriga a provar que o asilo dado a Battisti prejudica os direitos humanos de alguém. Então, cabe perguntar: quais? O réu ficou foragido mais de duas décadas e morou em diversos lugares, como França, México e Brasil, e não houve nenhuma queixa de que tenha recebido uma multa de trânsito. Portanto, cabe a soberania brasileira decidir quando, a quem e como outorga asilo. (Pessoalmente, penso que não é um direito da soberania de um país deportar um perseguido, mas esta é uma questão polêmica). No atual processo, Brasil tem estado permanentemente proibido de usar essa soberania. Com efeito:
Não é uma metáfora dizer que as principais decisões no caso Battisti não têm sido tomadas por magistrados brasileiros, mas por políticos italianos, o que transforma a justiça do Brasil em uma escudeira da política peninsular. Isto é uma forte injúria à autonomia brasileira, e carrega nítidos componentes racistas e hegemônicos.
Seria tedioso elencar todas as grosserias que os políticos italianos acumularam contra os políticos e defensores dos Direitos Humanos no Brasil. Vamos ver apenas as mais escandalosas:
1. Tarso Genro foi acusado pelos italianos de usar critérios ideológicos e não jurídicos.
2. Ministros italianos criticaram a Genro por objetar a imparcialidade da Itália, deixando transparecer que Brasil era uma sociedade inferior que não poderia dar-se ao luxo de criticar sociedades do chamado “primeiro mundo”
3. Um dos ministros ridicularizou os juristas brasileiros, fazendo alarde de que eles deveriam obedecer as propostas italianas, por causa de sua falta de capacidade para tomar decisões próprias.
4. Num estouro de obscenidade, muito comum entre membros da máfia e entre políticos fascistas italianos, um político fez gozação do Brasil, o qualificando como país conhecido por suas dançarinas. Ficou claro que tencionou dizer prostitutas, mas não teve coragem. Isso poderia ter merecido críticas da religiosa sociedade italiana que não tolera palavrões.

Os mais prestigiosos e isentos juristas brasileiros têm analisado de maneira detalhada o caso Battisti, e concordado amplamente na legalidade do asilo e a improcedência de pretensão da Itália. Este é o caso de Dalmo Dallari, tido atualmente como o mais autorizado especialista em direito no país, e de José Afonso da Silva, entre outros muitos, incluindo os defensores do réu. A opinião oposta é sustentada apenas por figuras obscuras que simplesmente querem aparecer, e sobre as quais o leitor encontrará numerosos panfletos na Internet.
Em resumo:
A decisão do governo brasileiro de outorgar refúgio/asilo a Césare Battisti faz parte do exercício da soberania do país. Esse ato é compatível com a lei internacional e com todos os documentos que defendem os Direitos Humanos.
Essa decisão, também, honra a tradição hospitaleira que Brasil manteve sempre em política exterior. Essa tradição, originada na psicologia social média da população, é tão forte, que até a ditadura militar do período 1964-1985 aceitou a presença de refugiados de esquerda no país, para não violentar essa tradição.

A intromissão da Itália no pleito é uma amostra da mentalidade racista e hegemônica, que trata os governos de países não europeus como inferiores e subordinados. A afirmação de que a libertação de Battisti viola a soberania italiana é absolutamente ridícula: supõe que países menos fortes devem obedecer aos mais fortes, sob pena de serem acusados de falta de respeito. Os que sustentam esta teoria (que aparece em alguns blogs e sites jurídicos) são verdadeiros indigentes intelectuais, e não apenas pessoas de má fé. Com efeito, um mínimo de inteligência lhes permitira encontrar pretextos melhores para defender a combinação máfia-fascismo-clericalismo, representada pelo governo italiano.