Colunistas
Jean Wyllys
A escravidão nos desafia
Embora abolida oficialmente, a escravidão no Brasil ainda resiste de forma clandestina (e, às vezes, nemtão clandestina assim). Parte significativa da sociedade civil cansou de esperar pela boa vontade dos parlamentares e decidiu pressioná-los a tomar uma atitude contra este crime: na quarta-feira, ela entregou à Câmara Federal um abaixo-assinado com 280 mil assinaturas a favor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, que determina a expropriação das terras onde for flagrado trabalho escravo. Esta PEC já foi aprovada no Senado e, em primeiro turno, na Câmara. Mas, para ser totalmente aprovada e, assim, alterar a Constituição, precisa ser votada em segundo turno - algo que a bancada de parlamentares que representam o agronegócio (onde, em muitos casos, vigora o trabalho escravo) não quer.
Dados do Ministério do Trabalho revelam que quase quatro mil pessoas foram resgatadas de situações de trabalho escravo em 2009. Exposta assim, em palavras, a situação em que viviam esses milhares de seres humanos não parece tão cruel. É preciso que se conheça de perto esta desgraça para que se tenha noção do quanto ela é chocante: o cidadão, na busca por um emprego que lhe permita se alimentar e aos seus filhos ou pais, aceita um trabalho duro e de muitas horas em que ele já o começa “devendo” ao patrão e do qual não consegue sair porque jamais temcondições de pagar a “dívida”, que só aumenta. Fugir? Impossível! “Jagunços”, “capatazes”, enfim, uma guarda privada e armada está sempre pronta a abater aquele que ousar escapar sempagar. Muitos desses escravos são crianças ou adolescentes que, na esperança de não morreremde fome, abandonaram a escola em busca de trabalho. É uma situação aviltante, chocante! E o pior é que alguns dos que mantêm seres humanos em regime de escravidão posam publicamente como homens de beme cristãos devotos quando não pagam fortunas a agências de publicidade para promover suas empresas que vivemdo trabalho escravo.
Como diz a letra da canção de Gilberto Gil, a usura dessa gente, já virou um aleijão. Gente hipócrita! A escravidão é um crime contra a humanidade. O Artigo 1º da convenção assinada em Genebra em 1926 define a escravidão como “o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercemos atributos do direito a propriedade ou alguns deles”. Já segundo a “convenção suplementar relativa à abolição da escravidão”, adotada também em Genebra, em 1956, estão inclusas entre as instituições e práticas análogas à escravidão: a servidão por motivos de dívida, o cativeiro, o casamento forçado (mediante pagamento aos pais, ao tutor ou qualquer pessoa ou grupo), assim como o trabalho forçado de crianças e de adolescentes.
É possível que as pessoas de bem não se deem conta do quanto este crime é doloroso para suas vitimas, hoje, porque os livros de história por meio dos quais elas estudaram e estudam costumam representar a escravidão de negros, no passado, como algo indolor. Se a escravidão, embora abolida oficialmente, cresce debaixo do nosso nariz, como é que conseguimos conviver com ela ao mesmo tempo em que afirmamos em mesa de bar ou durante o intervalo para o café que temos vergonha do fato de o Brasil ter sido um país cujo estado praticou a escravidão e o tráfico internacional de escravos? Bons sentimentos e intenções não bastam (o dito popular é feliz em sua afirmação de que, de boas intenções, o inferno anda cheio)! É preciso mobilização! É chegada a hora de cobrar de nossos parlamentares e de nossos governantes leis e políticas públicas que combatam e previnam a escravidão e/ou as situações análogas a elas.
É chegada a hora de encaminhar projetos de lei contra o trabalho escravo as nossas câmaras de vereadores e assembléias legislativas; de pedir para denunciar os casos de escravidão à imprensa ou na internet e cobrar providências aos nossos prefeitos e governadores. É chegada a hora de investigar a biografia dos candidatos às eleições para saber se seus negócios incluemo trabalho escravo ou têm qualquer ligação com este no sentido de o estimular ou o encobrir. É chegada a hora de coletar mais assinaturas a favor da PEC 438 e enviá-las à Câmara Federal para que a mesma seja votada em segundo turno. É chegada a hora de rogar aos nossos deuses que eles façam com que o chicote seja, por fim, pendurado; e que devolvam a liberdade a quem, para ser livre, foi criado!
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