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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

CARTA AOS BRASILEIROS

ando o que está em jogo não é apenas o destino de um homem, mas sim a imagem que temos de nós mesmos como povo e como nação.

Construímos uma identidade nacional ao libertarmo-nos do jugo colonial e também ao optarmos por receber com braços abertos os imigrantes que buscassem abrigo entre nós, para contribuir na construção de um país livre, soberano e justo.

Foi assim que nos vimos e foi assim que nos apresentamos às demais nações:

* como um povo cordial e solidário, que a todos oferece uma oportunidade para aqui trabalharem, prosperarem e serem felizes; e
* como um país generoso e acolhedor, que se recusou a reproduzir a intolerância, o fanatismo e a mesquinhez do Velho Mundo, tanto quanto recusou os laços de subjugação política.

Esta nobre tradição tem expressão fiel em nossa Lei do Refúgio, de 1997, que orgulhosamente afirma: seus preceitos devem ser interpretados "em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção de direitos humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido".

Foi obedecendo à letra e ao espírito da Lei do Refúgio que o ministro da Justiça Tarso Genro, como última instância, outorgou a Cesare Battisti o direito de viver em liberdade e dar sequência à sua carreira literária no Brasil.

É o que explica, de forma cristalina, o maior de nossos juristas, Dalmo de Abreu Dallari:

"De acordo com essa lei, cabe ao ministro da Justiça a decisão final sobre a concessão do refúgio, estando expresso no artigo 33 que 'o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão do refúgio', decisão da qual, segundo a lei, não cabe recurso.

"Assim, pois, no desempenho de suas atribuições legais o ministro da Justiça proferiu uma decisão, criando uma situação jurídica nova, o que não ocorreria com um simples parecer. Lamentavelmente, a imprensa fez confusão e tratou a decisão definitiva do caso como se fosse apenas um parecer do ministro, contribuindo para criar a ilusão de que o caso ainda não foi decidido e que o Supremo Tribunal Federal poderá julgá-lo concedendo a extradição".

Ou seja, há uma lei e ela foi obedecida; há uma jurisprudência firmada em episódios anteriores, quando o STF arquivou os pedidos de extradição a partir da decisão do ministro da Justiça; e o Supremo chegou até mesmo a discutir em 2007 se era ou não constitucional o citado artigo 33 da Lei do Refúgio, concluindo pela afirmativa.

No entanto, inconformada com a decisão legítima e soberana do governo brasileiro, a Itália de Berlusconi move céus e terras para impingir sua pretensão.

Além das inaceitáveis manifestações de achincalhamento das autoridades, instituições e até das mulheres brasileiras, de que tomamos conhecimento pela imprensa, governantes italianos chegaram ao cúmulo de exortar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a rever a decisão do seu ministro da Justiça, desprestigiando-o de uma forma só concebível em repúblicas das bananas.

Dignamente rechaçados, passaram a apostar todas as suas fichas no STF, tentando tangê-lo a anular uma Lei, desconsiderar a jurisprudência, criar um conflito de Poderes e sepultar as tradições humanitárias do povo e da Nação brasileira.

Este é o fulcro da questão: honraremos o sacrifício de Tiradentes, o sofrimento de todos que lutaram pela liberdade e o grito altaneiro de D. Pedro ou vamos deixar que o Velho Mundo novamente nos subjugue às suas imposições e aos seus rancores?

Pois o Brasil não sentencia ninguém à prisão perpétua, muito menos com a inacreditável privação da luz solar, uma recaída nas práticas mais desumanas do passado europeu, como as da Santa Inquisição.

Pois o Brasil anistiou seus perseguidos políticos em 1946 e 1979, no máximo década e meia depois dos episódios que deram pretexto às condenações, enquanto a Itália insiste em manter vivas as feridas dos anos de chumbo e quer jogar um homem inofensivo numa masmorra pelo resto da vida em razão de episódios ocorridos há mais de 30 anos.

Pois o Brasil admitiu sua responsabilidade pelos excessos cometidos por governos autoritários contra seus cidadãos e civilizadamente lhes pediu desculpas e ofereceu reparações, enquanto a Itália continua negando até hoje as torturas praticadas contra prisioneiros da ultra-esquerda durante os anos de chumbo e defendendo os absurdos jurídicos nos quais incidiu, como a aceitação incondicional dos testemunhos de delatores premiados, a retroatividade da Lei e até a possibilidade de manter acusados em prisão preventiva por mais de 10 anos.

E é simplesmente ultrajante que a Itália nos considere tão ingênuos a ponto de acreditarmos que movimentos de contestação envolvendo cerca de diferentes 400 grupos de ultra-esquerda, ao longo da década de 1970, tenha se constituído em atividade criminal e não fenômeno político!

Pois é isto que a Itália passou a afirmar quando percebeu que, pela Lei do Refúgio, Battisti jamais poderá ser extraditado em razão de crimes porventura cometidos no curso de sua militância política (na verdade, falsas acusações contra as quais não pode exercer seu direito de defesa).

Então, depois de emitir contra ele sentenças especificando claramente que se tratava de crimes políticos, capitulados em lei introduzida para o combate à subversão contra o Estado, recorre agora a tergiversações e malabarismos para tentar convencer-nos de que não foi bem assim, muito pelo contrário...

Por tudo isso, nós, brasileiros, esperamos que os ministros do STF sejam coerentes com a Lei, com a jurisprudência, com nossas tradições humanitárias e com nossa dignidade de nação soberana, reconhecendo o refúgio concedido a Cesare Battisti e determinando sua imediata libertação.

Setembro de 2009

CELSO LUNGARETTI
Jornalista, escritor e ex-preso político

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